O título desse texto podia ser a respeito do marxismo vulgar, mas até o marxismo vulgar possui uma vibração menos hegeliana e antidialética que o comunismo vulgar, exposto em lamentáveis linearidades, messianismos e crença não materialista e quase metafísica numa revolução que é menos processo e mais uma inevitável exposição de um destino manifesto.
A revolução que é de uma inevitabilidade que faz dela um ente: a Revolução, que é quase um evento escatológico. No princípio era o verbo, no fim A Revolução.
Essa linha produz consigo um revival do stalinismo com o que parecia quase impossível: seu louvor acrítico às dinastias soviéticas que se seguiram na defesa do socialismo em um só país, e menos teórico ainda que o produzido a partir das garras do georgiano bigodudo.
Se o stalinismo já trazia consigo uma deterioração do marxismo com seu socialismo em um só país, o etapismo, a guinada que levava consigo uma retomada do hegelianismo e da inevitabilidade do progresso e da razão na libertação da classe trabalhadora como se a realização histórica a partir do mundo ideal, o neo stalinismo engraçado faz do produto dos partidos comunistas do século XX um pastiche que piora ainda mais a teoria em torno do socialismo a partir dos olhos de Stálin, produz uma ideia de que o comunismo tem uma tribo em torno de si que tem o destino manifesto da libertação do homem.
A Revolução virá, sabe? Ao ler os escritos stalinistas atuais, e não só, ao ver seus vídeos a gente percebe uma ideia de esquerda, de luta, de produção revolucionária que traz consigo não a dialética marxista e tudo o que a envolve, a investigação sobre o cotidiano, o dia a dia da classe trabalhadora e da própria classe enquanto relações ou ente, mas seu inverso, sua categorização em espaços estanques.
E essa linha traz da obra e vida de Marx, Engels, Rosa, Lênin, não elementos teóricos que permitem uma ideia metodológica sobre o real e a produção de meios que permitam à esquerda atuar como indutora para que uma revolução ocorra, que dialogue com a classe a procurar sua realização e que enxergue o momento histórico de sua eclosão, para lidar com as questões da classe de forma a liderá-la, mas verbetes, versículos, ditos, apontamentos messiânicos sobre como lidar com o hoje a partir das palavras de poder do antigo sábio comunista que aponta nosso destino manifesto.
Isso sequer é novo. Benjamin apontava essa tendência nos anos 1930, e Hobsbawn fala disso explicitamente em sua obra “Sobre a História” (Capítulo 15, página 206).
A ideia de uma inevitabilidade histórica do comunismo/socialismo, a leitura estanque de uma relação torta entre superestrutura e infraestrutura colocando o econômico como uma base que produz a cultura, ignorando as circularidades das relações entre cultura e economia, e outros tantos fatores, assim como entre as classes e no interior delas, tudo isso é uma herança do revisionismo marxista ou marxiano dos primeiros anos do século XX e continua até hoje a partir de bases teóricas definidas ainda antes da Primeira Guerra Mundial.
E à revelia da superficial antítese entre os revisionistas da social-democracia alemã com o comunismo de Lênin que posteriormente foi tomado, relido e abraçado por Stálin defendendo-o como Marxismo-Leninismo, essa tendência teórica, por vias tortas, saiu do revisionismo pequeno burguês eleitoreiro para o discurso dos defensores do socialismo em um só país, combatentes contra a revolução permanente.
A própria crítica à transformação, por Kautsky por exemplo, das ideias de Marx em um rearranjo teórico que incluía evolucionismos e positivismo à revelia de releitura modernizante ou a ideia da data de validade de análises sobre a história, como a ideia de Bernestein da necessidade de atualização das ideias de Marx para novos contextos históricos, uma atualização que incorporou o idealismo hegeliano anterior à própria dialética marxista, ignorando que o processo dialético e a própria ideia de Marx das características de sua análise obrigar a uma rediscussão cotidiana das condições objetivas e subjetivas dos processos históricos, saiu de um discurso que confrontava a ideia de revolucionários como Rosa Luxemburgo e Lênin para o interior, para a alma da teoria marxista que virou o eixo do que os PCs produziram como teoria a respeito da revolução via normas do comitê central do PC da URSS.
A própria ideia do etapismo, que pensava as alianças com as burguesias nacionais como etapa para uma revolução burguesa e posteriormente produzindo uma revolução socialista tá ali na ideia de Bernstein, na releitura de Kautsky e depois na produção teórica dos PCs pós Stálin.
Isso renascer nos anos 2010 do século XXI é uma espécie de retorno como farsa, assim como a eleição de Bolsonaro.
Não há a necessidade de falsa simetria pra discutir as proximidades entre o Bonapartismo do neopresidente ex-capitão e o sonho molhado de um Comunismo hegeliano com amores autoritários e releitura torta do combate ao imperialismo e saudades de Gulags e Stálin, fingindo que é bacana pra caralho campos de concentração que mandavam pra morte gente que era tão comunista ou mais que o senhor Georgiano, mas ameaçava sua obsessão messiânica que faria existir um culto à personalidade que quase tinha a face de uma religiosidade marxista, por mais contraditória que seja (Leiam Benjamin a respeito).
Marx já sacava a batata quente da idolatria de sua teoria antes de morrer, Engels tretou com a edição de seus escritos pela social-democracia alemã com o intuito de dar a distorções do que ele escreveu um sentido de endosso histórico de um dos totens tabu humanos do comunismo.
A questão é que tem teoria a rodo pra deixarmos de trazer pro coração de uma luta/teoria em si internacionalista, que se rediscute e se refaz a cada novo tipo de transformações de processos históricos e que produz novas percepções à exaustão a partir de Marx em torno de todas as suas descobertas relativas às ciências humanas ou até mais que isso, da economia à história, passando pela ecologia.
Fica bastante incompreensível pra quem lê Marx preocupado com as transformações ambientais a partir do capitalismo provocando queras metabólicas ver que neo-stalinistas reproduzem um discurso anti-ambiental em prol de um desenvolvimento econômico que rima mais com a UDR do que com o velho Karl.
Mais ainda ver reprodutores de uma ideia de classe como algo dado que ignora todas as descobertas a partir da categoria formulada pro Marx da classe como fenômeno histórico, ou seja, fruto de contextos que são diferentes em lugares diferentes, e que é um processo de determinação relacional, ou seja, uma classe existe no tempo, espaço e em relação a outras classes e não como algo que brota a partir do advento do capitalismo.
Piora quando vemos os stalinistas autoproclamados marxistas ignorando que o que Marx entendia como uma aplicação do que ele produziu como teoria não eram as formas autoritárias que ele combatia a partir das visões platônicas e positivistas de parte do socialismo que ele chamava de utópico, mas a Comuna de Paris.
Outra coisa é a ideia de uma superação do Capital como algo que virá, impávido que nem Muhamad Ali, e não fruto de um desgastante, longo e tenaz combate diário das forças socialistas e comunistas para produzir uma base organizativa das classes trabalhadoras que produzam a revolução ou aproveitem as ondas de sua eclosão nos momentos em que os processos históricos a tornarem inevitável em sua diversidade de tempos, lugares e características específicas da classe trabalhadora em seus contextos.
O fato da história ser movida pela luta de classes, considerando que Marx quando criou o conceito não tinha ideia da possibilidade e classe ser um fenômeno histórico (O cara produziu uma cacetada de coisas, mas não era Deus), não faz com que essa luta tenha uma linearidade e um destino manifesto da classe operária na superação do que a oprime por inércia. Da mesma forma toda a teoria que permite à classe a posse de ferramentas de análise do real que a empoderem para o combate pela sua libertação não é um conjunto de normas dogmáticas sagradas que recitamos enquanto abatemos carneiros em holocausto ao Deus da Dialética.
A teoria é ferramenta, não dogma. O cara que chega com a teoria é alguém que atua COM a classe, não por ela, menos ainda como líder dela. É na classe que surgem as lideranças que com ela encaminham o processo de sua libertação, afinal.
Ter a ideia do socialismo/comunismo como destino manifesto; a distorção da própria ideia de nossa necessária internacionalização para um nacionalismo supostamente anti-imperialista, mas fã de se tornar um “imperialismo do bem”; a negação das necessárias percepções do real que nos expõe que a contradição entre Capital e Natureza superam até as contradições entre Capital e Trabalho, na prática, no encaminhamento de extinções em massa, inclusive a nossa, e no efeito que o ataque do Capital à natureza causa à classe trabalhadora, tudo isso tem uma característica em comum que torna o marxismo vulgar um hegelianismo que nega o que Marx produziu: a ideia e a ação que tornam seus defensores reprodutores de linhas genericamente modificadas da base teórica marxiana e repetidores das falas de grandes marxistas como mantra.
É fundamental que atuemos como protagonistas de discussões que exponha que não há uma revolução no horizonte pro haver horizonte, mas que para que a produzamos precisamos de organização e ação cotidiana, não colonizadora ou messiânica, mais produtora de uma práxis libertadora que dialogue com o real a partir de bases teóricas marxistas.
Ter uma mente onde exista um destino manifesto é um entrave, não uma necessidade de militante que busca em Marx um caminho teórico de melhor compreensão do real e ferramentas para o empoderamento próprio e coletivo na luta de classes.
A redução do marxismo a seu aspecto teológico e ao comunismo como uma reprodução como farsa de um stalinismo que já era um problema em 1956, se tornando um marxismo vulgar que remete a Hegel, só produz revoluções no estômago.
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