Quando você puder assista a minissérie The Loudest Voice que conta a história da fox News e do principal responsável pelo seu sucesso e pela construção do esqueleto de sua linha editorial: Roger Ailes.
Não se preocupe se você não reconhece o nome ou seu papel na história estadunidense ous e a história da Fox News lhe parece distante do seu dia a dia, vocẽ ao assistir o primeiro episódio já vai entender o caminho que a emissora e o personagem tiveram na construção do que vocẽ vive hoje.
Claro, é só uma minissérie, não abarca a totalidade da realidade histórica em torno da ascensão de Trump e de uma lógica de extrema-direita que se organiza na negação de todo o conhecimento estabelecido e científico em nome da tese de que a verdade está em disputa, ou seja, que cada um tem sua verdade e que ela possui assim um peso idêntico, seja você um sujeito razoável que se liga nos limites mensuráveis do real, a ciência, ou você sendo um terraplanista que diz que a Terra é plana e que termômetros roubam sua senha do cartão de crédito.
Claro também que a minissérie revela a visão de autores de um roteiro, que se baseou em um livro que por sua vez é uma percepção que vive no contexto do tempo do autor e de suas relações afetivas, políticas,etc, mas todas as obras sobre todas as coisas precisam receber essa observação.
A visão descrita na minissérie tem todo o conhecimento do hoje sobre o ontem, e esse conhecimento se reflete na leitura da história da Fox e de Roger Ailes.
Só que o retratado na minissérie revela um projeto de linguagem de violência que constrói a narrativa de uma percepção branca, ultra conservadora, de extrema-direita, racista, misógina e homofóbica que evidentemente se relaciona com a ascensão de Trump, Bannon e seus filhotes pelo mundo como Bolsonaro.
E por que evidentemente?
Porque são documentadas nas participações dos citados, em vídeo, a construção das narrativas, a participação desequilibrada de republicanos fundamentalistas em horários específicos da emissora e até a participação de Trump no pós Obama, quando o ultra conservador Ailes abre a caixa de ferramentas para promover sua agenda de combate ao presidente com requintes de crueldade racista e xenofóbica.
A narrativa, obviamente ficcional, não é um documento cristalino de uma época, nenhum documento na verdade é, mas indica as fontes de observação de processos complexos de paulatina desconstrução da própria ideia de verdade.
Vai aparecer quem diz que a culpa da flexibilização da verdade são dos “identitários”, dos “pós-modernos”, dos Incas Venusianos e de toda a ciência humana que percebe que há recortes de classe, etnia, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, etc, em toda a percepção do real?
Vai, assim como aparecerão os que dirão que a culpa do crescimento do negacionismo científico e da razão é a da produção científica e seus gargalos de divulgação, mas convém ter mais percepção entendendo os processos políticos que produziram, por uma questão de embate e controle hegemônico, a reação à ciência como inimiga como parte de um processo de derrota de qualquer parco cheiro de combate às desigualdades, transformadas em socialismo e comunismo dos EUA à Pindorama.
A minissérie trata detalhadamente das opções de Roger Ailes na constituição de sua Fox News, desde a secundarização das mulheres a papéis de bibelôs de uma audiência que as vê como ajudantes dos âncoras homens até a criação do âncora antípoda aos liberais, munido do que há de pior nas ferramentas de retórica política, e empoderamento de usuários do site de extrema direita Breitbart.
Tá tudo ali.
A partir da história da Fox News, Roger Ailes e do papel de Rupert Murdoch na constituição de uma frente de extrema-direita na imprensa e na mídia em geral, há todo o caminho para ser analisado e percebido de como esses atores e outros tantos, como os Think tanks liberais que produziram o MBL, influenciaram ondas intensas de desconstrução da democracia em nome da hegemonia branca, ultra conservadora, racista, misógina, LGBTfóbica,etc.
Bannon? Sardinha frita de um mar que começa a produzir tubarão nos anos 1960, faz dos anos 1980 até hoje um caminho de transformação definitiva da imprensa como partido da burguesia, mais ou menos nitidamente.
E é a partir deste tipo de viés e de opção e projeto político que se fez vivente o negacionismo científico, climático, histórico (já existente na negação do holocausto, mas ampliado) e principalmente político, que trata a democracia, por permitir que opositores ao projeot de extrema-direita exista, como inimiga.
Todo o processo posterior que fez com que observadores menos atentos culpassem a esquerda, Papai Noel, a Cuca, as universidades, pela distância entre o pensamento e o povo, vão ao chão com a percepção de que o que houve e há é uma disputa desigual entre fontes de informação.
Fontes de informação que sofrem com mecanismos de barragem do escoamento dela,desde os inícios desiguais das posições dos discursos até o grau de capacidade de comunicação a partir das posições de discursos.
As universidades e suas mídias e podcasts, a sociedade civil organizada ou não, disputam com conglomerados com enorme capacidade e equipe, estrutura de difusão da informação que tornam a ciência um pequeno guerreiro de desenho animado contra Gigantes de Marfim armados até os dentes.
Enquanto o conhecimento científico é divulgado nas revistas acadêmicas, que dialogam no interior da comunidade e são mal traduzidas quando passadas para mídia, ou por canais de divulgação científica que buscam traduzir a linguagem acadêmica pro grande público, as grandes emissoras, mesmo as em tese mais bem intencionadas, dão a mesma capacidade de divulgação de discurso pro Dráuzio Varela e pro Osmar Terra, sendo que só o primeiro zela pela honestidade intelectual para produzir conhecimento e informação.
Enquanto há inúmeras variações de debate nas diversas ciências, como a economia, você não vai ver na globonews, ou na CNN, nenhuma linha da economia que não seja a que trabalha com os paradigmas ultra liberais, tornando esse viés o único científico para uma gama enorme da população.
E há mais, há quem trate como normal discursos anticomunistas e trate , como quem mente quem aponta as ditaduras na América Latina ou Churchill como criminosos capitalistas e que promoveram genocídios, ou que apontam a escravidão como uma autoria liberal, capitalista e nao o inverso.
O discurso anticomunista ganha palco em programas da grade que o comunismo que aponta que Stálin foi um ditador jamais teve e provavelmente terá.
Precisou Caetano Veloso provocar Bial para que algum nível de debate passasse a ocorrer e mesmo assim reduzindo toda a esquerda ao fã clube do ditador georgiano sem qualquer contraponto mais sério.
A construção do discurso que deu em Trump e Bolsonaro, gestado pela Fox News e por sua vez nascido no coração do Partido Republicano dos EUA (Ailes foi assessor do Nixon), tem uma raiz histórica que remete à própria transformação da televisão em uma disputa de nichos e porta voz de conservadorismos diferentes, formados por percepções mais ou menos radicais sobre o capitalismo no interior da lógica liberal.
Essa raiz histórica, no entanto, não existe apenas no discurso mais negacionista, existe também na normalização do processo de igualar batata frita com Bóson de Higgs que as emissoras e jornais adotaram desde os anos 1990 para cá.
O modelo pode ser encontrado quando Kim Kataguri e Guilherme Boulos escreviam para a Folha ou Olavo de Carvalho para O Globo, Rodrigo Constantino para Veja ou hoje quando o Caio Coppola muge em diferentes níveis de tortura do bom senso contra adversários liberais moderados trocados a todo momento, sem jamais mudar o modelo de igualar os desiguais.
Qual o modelo?
Tornar palatável dizer que um completo indigente intelectual ou um mentiroso patológico tem o mesmo grau de credibilidade que um sujeito responsável com seu discurso, os dados que emite e a forma de expô-los.
O espaço dado a Rodrigo Constantino e Olavo de Carvalho em O Globo e Veja pavimentou a naturalização de seus livros e ataques assassinos ao bom senso e à ética pessoal porque serviram de armas contra o PT e a esquerda.
Alinhar Kataguiri a Boulos, com só o segundo tendo a responsabilidade do espaço, ou Caio Coppola com quem quer que seja que não seja um canalha absoluto e tenha um mínimo de vergonha na cara, serve a um objetivo e este não é o de expor a diversidade de pensamentos na sociedade, até porque há conservadores com honestidade intelectual, política e moral.
E esse modelo nasceu em 1996 com a Fox News e seu projeto de conquista do coração da América em nome de um projeto de setores do Partido Republicano que conseguiram tornar Bush e o McCain figura palatáveis diante do absurdo imoral que se tornou o partido.
A ciência, as universidades, a esquerda, os movimentos, precisam sim aprimorar suas armas na desigual guerra de informação em curso, mas primeiro é preciso saber o peso dessa guerra, o tamanho dela, a desigual estruturação dos campos de batalha e das ferramentas disponíveis.
As universidades produzem conhecimento em larga escala e recebem a menor atenção possível da mesma mídia que se diz democrática e transforma mentira de discurso em defesa em suas capas.
A esquerda é tratada inteira como adversária estúpida, imoral e ilegal,o Pantanal queima e o Presidente da República acusa indígenas da autoria dos desmatamentos e queimadas que seus aliados produzem e a imprensa atua como amenizadora do impacto das vozes que destroem as bases mínimas do respeito ao outro e ao conhecimento.
Quando o Bial leva o Jean Wyllys para um programa com Olavo de Carvalho como voz do mesmo patamar e este último trata o comunismo, sob o silêncio cúmplice de Bial, como portador de discurso de ódio por si só, o mesmo Olavo que usa e abusa de racismo, misoginia, LGBTfobia,etc, o que parece democracia é um discurso e um discurso cujo viés nunca passou perto do Jean.
A imprensa é porta voz do que se tornou o establishment hoje, desde o jornalismo declaratório até o método Ailes de transformar desiguais em portadores do mesmo espaço, e não adianta vestir amarelo, fazer vídeo com dancinha e pedir “dízimo cívico” enquanto trata ataques genocidas e ecocidas como se fossem defesa.
O terraplanismo, para horror do iluminismo de salão cúmplice dele, é filho dileto de um método que todos os jornais e emissoras de Pindorama, ou não, adotaram em suas grades diárias.
A ciência que não cabe na opção ideológica das editoriais sendo tratada a pontapés ajudaria a não existir terraplanismo.
O espaço da crítica pela e para a esquerda é obviamente necessário, sem ela erraremos para sempre, mas o que se viu e vê não é crítica é ataque.
É a exposição de um lado contra outro, é atingir portadores de arco e flecha com canhões, naturalizando o que não pode ser naturalizado para fingir democracia onde há soterramento desqualificador.
Esse viés faz com que jornalistas supostamente arejados e antenados tratem um elogio a Lênin feito pela esquerda como se fosse um elogio a Stálin e sua ditadura.
Mas como explicar para quem se vê cercado de neutralizadores do discurso que comunismo é discurso de ódio que isso é uma estupidez?
Como explicar para quem diz que a esquerda precisa apagar suas experiências e memórias porque isso, pasmem, “empodera o bolsonarismo” enquanto ignora, por tolice ou oportunismo, todo o passivo da ideologia que defende, mesmo quem finja ou ache que não, o liberalismo?
Engraçado, a esquerda tem trocentas alas que discutem entre si e fazem críticas e autocríticas públicas, tá no manual,desde pelo menos 1848.
Provavelmente se você sabe patati patatá de todas as cagadas da URSS você viu primeiro numa publicação tão comunista quanto o alvo da crítica.
Bakunin e Marx se xingaram de forma muito elegante, ou não, em textos maravilhosos, públicos, à disposição de qualquer leitor.
Rosa brigou com Lênin, Lênin brigou com a Rosa, Trotski brigou com os dois e mais com Stálin e levou uma picaretada.
Ainda tinha Pannekoek brigando com todo mundo.
Todos os frágeis laços que unem a esquerda são embebidos em pancadaria institucionalizada e generalizada entre viés teóricos e organizativos, todos públicos, mas a imprensa insiste em tratar tudo isso e toda a sua complexidade como se fosse a mesma coisa.
E é tratando o diferente como se fosse a mesma coisa que chegamos até aqui.
É nesse caminho que se perdeu o bom senso e se transformou o serviço público em vagabundagem, as universidades em torre de marfim e a democracia na latrina do negacionismo.
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