A Esquerda, a Direita, Eleições, Catequese e Colonização

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Eu voto nulo e faço campanha pro voto nulo, todo mundo sabe,mas não dá pra deixar de comentar eleições e como elas se dão, e como o comportamento da esquerda é equiparável ao da direita com relação aos mais pobres.

Os rumos eleitorais nas grandes cidades tendem a uma enorme confusão.

A direita encontrando mais dificuldade do que esperava e a esquerda, que contava com a eleição certa de Luciana Genro e Freixo e a reeleição de Haddad, enfrenta dificuldades extra nas suas caminhadas.

Parte do problema e das dificuldades da esquerda vem menos da fantasia de uma unidade mitológica perdida e mais da perda de capilaridade de sua organização no decorrer dos anos 1990,2000 e 2010.

O que isso quer dizer? Quer dizer que dos anos 1990, onde havia núcleos do PT espalhados por praticamente todos os bairros das grandes cidades, até os anos 2010, onde nem o PT manteve o que tinha nem o PSOL avançou sobre os espaços deixados pelo outrora maior partido da esquerda, a organicidade dos partidos de esquerda não só minguou como foi transformada numa mudança metodológica de organização que priorizou a formação de burocracias à formação de contingente militante e politização consciente nas cidades e interior.

Enquanto isso a direita, especialmente a vinculada a grupos evangélicos, construiu sólida expansão nas periferias e cidades do interior via velhos métodos, centros sociais e clientelismos, e novos atores, a participação cada vez mais ativa de religiosos neo pentecostais na política e inserção forte das igrejas na construção de laços de solidariedade comunal nos mais diversos locais dos grandes centros urbanos e interior.

Em resumo: A esquerda optou pelo eleitoral a partir do voto de opinião, a direita ampliou seu arco de ação fazendo trabalho de base cotidiano via igrejas e centros sociais e gerou um enorme contingente de gente que não só apoia candidatos de direita,mas os apoia ideologicamente, fazendo parte orgânica, especialmente via igrejas, das forças políticas que os mantém.

Exatamente, gafanhoto! A direita construiu militância capilarizada, enquanto a esquerda focou em manutenção de militância orgânica de classe média e expansão de apoiadores não militantes a partir de laços mais próximos do clientelismo, especialmente via lulismo, que de identificação ideológica.

E o segundo caso muitas vezes muda de lado pelos mesmos laços, e ainda passa a participar de um tipo de organicidade ideológica conservadora.

São vinte anos de transformações na direita e na esquerda, e é óbvio que isso daria em mudança no quadro eleitoral.

Nesse meio tempo outro fenômeno também cresceu nas periferias: Uma esquerda não partidária que não se identificava com a esquerda sucrilhos e combatia a direita evangélica.

Essa galera caiu dentro de uma posição apartidária,mas crítica, quando não anarquista e autonomista.

Muitos dessa esquerda periférica votam, outros não, todos são politizados e buscam um debate politizado a partir do ethos da própria periferia, seja via RAP, seja via organizações como núcleos socialistas (O IFHEP em Campo Grande no Rio é um exemplo), seja via coletivos de educação popular ou assembleias populares das periferias.

Toda essa galera tem posição combativa pela esquerda e critica fortemente o viés elitista da esquerda partidária tradicional.

E ai temos um fenômeno interessante: A direita dialoga com essa esquerda, mesmo sem contar com seu apoio e sabendo disso,mas a esquerda partidária a ataca.

E por que? Porque o pastor que aglutina os laços de solidariedade comunal que o sustentam politicamente sabe que o filho da Dona Naná que é anarquista e não vota nele é filho da Dona Naná, Primo do cumpadre meu Quelemem, irmão do Riobaldo, namorado da Zuleica, filha do marceneiro João, todos da igreja, menos o o filho da Dona Naná, que é bom menino e que isso de anarquia vai passar.

O Pastor pode estar errado no diagnóstico,mas na relação não. Ele sabe que o sujeito que ele vai combater na favela tem mãe, e a mãe é da igreja, e que os laços não podem ser rompidos, ele vai precisar conversar,mesmo com condescendência e mal disfarçado nojinho,mas vai ter de conversar.

E o assessor do vereador do partido bonito que dança tambor de criola na Lapa? Porra esse fica ofendidíssimo porque aquele fudido preto e pobre da favela do Jacó não vota no seu candidato que é a salvação da porra toda com sua proposta de fazer uniformes escolares de cânhamo que geram energia a partir da absorção da luz do sol e carregam celulares enquanto o corno fica no sol esperando duas horas pelo ônibus.

Como assim a esquerda não merece o voto da periferia?

Talvez seja porque a periferia nunca viu a esquerda, nem comeu, só ouve falar.

Esse comportamento se dá de forma simples: Catequese e colonização.

Sim, a esquerda espera uma reação de gratidão do fudido àquela que lhe leva a luz da consciência política de cima pra baixo à esquerda de quem entra. Logo ela que desperdiça domingos de sol que podia gastar na praia à passos de sua casa pra levar a luz da consciência política à esses bárbaros da favela é desprezada? Como assim não se consegue mais catequizar o pobre?

Talvez amigo, porque a direita montou posto avançado de colonização enquanto tu aparece apenas com o evangelho surrado de um marxismo cambeta.

O evangelho que vale é o do pastor que tá ali dando a cara tapa todo dia e não do missionário catequético e caquético que aparece do nada falando de um Deus Estado socialista mágico que tende a puni-lo se ele não gostar de seu messias.

Aliás, bora combinar que a esquerda que aparece pra catequizar também quer colonizar a periferia, né?

E por isso a esquerda que tá na periferia também repudia tanto o socialismo amarelo quanto o bispo Machado.

Mas quando a esquerda partidária vai entender isso? Nunca, ela sequer entende que passar na casa de alguém não é morar lá, imagina questões complexas.

O Hegelianismo travestido de Marx que a esquerda partidária insiste em usar, a partir da versão de São Lênin-Zizek-Mujica, impede por seu idealismo que a dialética funcione.

Por isso temos uma esquerda marxista sem Marx, sem antropologia, sem sociologia, sem samba.

E enquanto isso a direita tem o evangelho, e laços de solidariedade comunal, e diálogo com o filho da Dona Naná, mas o problema pra esquerda é quando o cozinheiro escreve.

 

O que fazer no dia depois de amanhã?

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A esquerda vem sendo reativa há tempos, isolada em seus castelos, transformada em assessoria de gabinete de governos, movimentos organizados inclusive, desde muito tempo antes do PT assumir o poder em 2003.

Funcionou por muito tempo a relçação entre movimentos, partidos, governos e mandatos. Construiu caminhos através da burocracia, programas de governo e projetos de lei.

Só que enquanto se acostumava com a relação íntima com palácios a esquerda foi paulatinamente perdendoas ruas, e quando percebeu isso, especialmente em 2013, outras forças da própria esquerda e da direita começaram a ocupá-las. A saída pra governos e partidos vinculados à esquerda foi criminalizar quem ocupava as ruas, colocando todos no balaio do fascismo.

Isso esvaziou as ruas por um tempo até que a direita se reorganizou, amparada por governos explicitamente de direita, e voltou pras ruas, amparada por policiais que construiram publicamente a diferença entre “manifestante” e “militante”, o segundo, “comunista”, deveria ser reprimido, os demais não.

Atônita a esquerda partidária permaneceu longe das ruas. Aprisionada e processada, a esquerda não partidária também, embora atuasse fortemente nas ocupações de escola, manifestações por passe livre, etc, atuando em geral por vias menos ortodoxas, mais próximas às periferias e vinculadas a bandeiras mais práticas e cotidianas.

E cresceram os movimentos de direita, a classe média conservadora tomou gosto pelas manifestações sem política, sem repressão policial, com muita festa, anticomunismo, ódio racial, ódio a LGBTTS, feminismo e em especial ao comunismo. O fascismo começava a pôr a cabeça de fora.

A esquerda, aidna atônita, mas percebendo o perigo de impeachment saiu às ruas por um breve tempo, depois voltou a aguardar com a fé dos incansáveis, uma solução salvadora vinda das articulações palacianas de suas figuras públicas.

E não teve solução, não teve articulação que desse jeito, Dilma caiu, Temer assumiu com um ministério mais conservador que o de Collor.

Enquanto tudo isso acontecia várias manifestações antifascistas e ocupações de escolas ocorriam, com a esquerda partidária as ignorando ou tentando se apropriar delas pela via de UBES e UNE sem muito mais do que dezenas de estudantes ocupando o Parlamento, enqquanto nas escolas alunos auto-organizados tocavam o baile do ativismo que transforma, conseguindo em São Paulo uma CPI da Merenda e no Rio o fim do SAERJ (Prova de avaliação de “desempenho”). As ocupações horizontais permanecem em vários lugares, como em Goiás, Porto Alegre, Fortaleza.

E ai, e o resto da esquerda, o que faz no dia depois de amanhã do Impeachment de Dilma?

Bem, pouca coisa prática além de choramingar sobre o recuo conservador que é o Governo Temer e listar publicações internacionais criticando o impeachment de Dilma.]

Zero de análise, de auto-crítica, de propostas, zero de percepção de algo além do óbvio sobre o processo.

Parece que Temer, vice de Dilma, desceu de um disco voador vindo de Marte.

A esquerda petista lembrou outro dia que os índios existem e colocou que com Temer eles vão acabar. Bem, pode ser, inclusive Temer precisa apenas olhar como Dilma produziu parte do processo de extermínio indígena e repetir, nem precisa reinventar a roda.

Esse é parte do problema: Cadê ao menos o “Foi mal!” do PT sobre os recuos que empoderaram essa direita que o golpeou pra gente começar a conversar coletivamente sobre resistência? Não vai rolar? Não, não vai rolar, mas então, que tal ao menos propor caminhos de resistência além do Avaaz?

Não sei se vocês notaram, mas dizer o óbvio, que o ministério Temer é um horror, não o transforma no Coelhinho da Páscoa.

A ausência de mulheres e negros, a transferência da titulação de Quilombos pro MEC não é apenas um informe, é uma prática entrando em ação. Alexandre de Moraes na Justiça idem, significa que o pau vai comer.

E não, não adianta vir com aquele papo brabo de “Viram? Sem o PT é pior!”, porque senão a gente lçembra a responsabilidade do próprio PT com alianças à direita e empoderamento do mesmo PMDB dentro dos governos Dilma e Lula. Sim, sem o PT é pior, mas com o PT não estava bom e metade do ministério Temer também foi ministério Lula ou Dilma, de Henrique Meirelles a Henrique Eduardo Alves, Jucá, Kassab, etc. Melhor mudar de assunto, não?

Então, estão vendo as escolas? Estão vendo as manifestações antifas? Que tal baixarem a bola e a sbandeiras e colarem enquanto militantes pra apoiar, dar força sem tentar apropriar, aparelhar, transformar em palco eleitoreiro? Que tal se transformarem de novo naquela galera que não queimava na fogueira valores e bandeiras históricas pra construir o cadafalso que produziu o impeachment de Dilma?

E podemos avançar, há enormes mudanças no quadro teóprico prático da militância anarquista e socialista desde 1917, sabe? Tem as experiências do Curdistão libertário sírio, por exemplo, que dão caldo. E acho que se o Ocalan velho de guerra conseguiu produzir uma teoria libertária vindo de uma tradição leninista a gente consegue também, não?

Que tal a gente começar a discutir comitês de resistência? Não, dificilmente vai ter a adesãod e autonomistas e anarquistas, mas tem boa parte da esquerda que ainda ama votar e adoraria uma experiência organizada de forma horizontal, mesmo com o exemplo dado recentemente sobre o valor que a eltie política dá ao voto. Sabe o PODEMOS e o SYRIZA? Pois não nasceram cooptados pelo sistema e tem mais horizontalidade que a maior parte dos partidos brasileiros, mas muito mais que PSOL e PT.

Sei que RAIZ e REDE não são similares a PSOL e PT, embora o RAIZ esteja hoje em filiação solidárioa ao PSOL, mas são experiências de organização político partidária bastante mais horizontais e o quadro de recuo conservador não tá deixando barato quem fica pensando apenas no próprio umbigo.

Para além disso há contingentes autonomistas e anarquistas produzindo coisas novas, com resistência a tarifaços, aumento de energia, passagem, com luta por ocupação de imóveis, tem todo um trabalho educacional sendo feito. Tudo isso pode ser exemplo de funcionamento pra quem quiser transformar de novo o quadro político e construir saídas ao recuo conservador.

Ainda mais se analisarmos o quanto esse recuo que tenta atingir cotas, LGBT, mulheres, etc e também não aponta nenhuma saída econômica que vá funcionar em um quadro de crise econômica internacional, que tende a ampliar a recessão, além de pôr fogo no cabaré que é hoje o teatro político brasileiro.

Já tem ocupação do IPHAN, auditores do CGU bastante invocados, pra disso sair greve é dez reais, mesmo o Alexandre de Moraes achando que o Brasil é São Paulo e vai geral protegê-lo de mídia e de exposição.

E ai, que tal parar o mimimi e produzirmos o avanço na marra?

The Bookchin is on the table

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Pensar ecologicamente é descentralizar, é construir holisticamente e descentralizadamente um processo coletivo de interação. É gerir-se e gerir a política para além da dialética e do diálogo, buscando a polifonia onde não que tente e nem se construa a síntese, mas se produza um processo que vá além da síntese, do amálgama do processo coletivo e horizontal em um processo amputado, sintético que que se conclui com a tentativa de unidade opinativa e não de construção coletiva concreta onde a isegoria se transforma em liberdade.

Ecologia demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, anti estatal, anti capitalista, indo além da proposta centralizadora da maior parte dos partidos e do próprio ethos partidário, de manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados.

É preciso desconstruir a ideia de mudança pela gestão do estado sem mudar a estrutura, buscando dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante construir um mundo idealmente descentralizado e comunal.

Se o ecossocialismo despertou em mim esta compreensão, a partir de Tanuro e Lowy, ao ler Bookchin entendi que ser ecológico é ser anticapitalista e antiestatista e que o centro das transformações está na tomada de poder pelas comunidades, pelas aldeias, pelos bairros, pelas mulheres, pelos velhos, pelos índios, pelos quilombolas, pelas crianças.

Se a anarquia despertou de novo em mim o antiestatismo que nunca foi embora e a ideia radical de que sem destruir a hierarquia não se tem anarquia, em Bookchin entendi que além de anarquizar é preciso ecologizar, é preciso ir além de ser horizontal sendo ecológico, participando ativamente da relação integral entre espécies, entre reinos, entre as diversas formas de existência presentes no mundo dito natural.

A ideia de Bookchin é revolucionária por si só quando ele discute a cidade e a ecologia a partir da necessária defesa da diversidade, do papel revolucionário dos bairros e das cidades na luta contra o estado e pela relação de vizinhança, de solidariedade comunal, que rejeita a hierarquia do estado impulsionando a opressão. A partir deste eixo ele constrói a teoria onde bebe em fontes amplas, desde a democracia grega até se referenciar nas associações comunais da Nova Inglaterra, presentes até hoje de alguma forma como eixo de tensionamento com o estado estadunidense em suas diversas esferas, especialmente nos condados e municípios, mas indo até mais longe que isso.

A ecologização da política se reflete para além do discurso, e mais, ataca o eixo de compreensão do estado, coletivos, comunidades partindo da lógica anti hierárquica. Este efeito influenciou os Zapatistas no México, os revolucionários curdos de Rojava e diversos coletivos anarquistas ou não mundo afora. E influencia, pois radicaliza na defesa da horizontalidade e da ideia revolucionária que sem diversidade e ecologia o pensamento anti hierarquia morre por falência múltipla de órgãos.

E por que morre? Porque é fundamental para a sobrevivência de um bioma que ali exista diversidade, ausência de hierarquia, relação de isonomia entre os entes que ali vivem, acesso a alimento, água, presença de múltiplas e igualitárias regras de existência paras que da árvore ao esquilo todos vivam para que nutram-se em equilíbrio.

A tosca analogia entre predador e predado esquece que o predador morre, apodrece, vira adubo que alimenta as árvores, que fornecem vegetais que alimentam os animais menores que alimentam os predadores. Com o perdão da analogia também tosca, mas a ecologia deixa claro que o mais forte não sobrevive sem uma relação de simbiose em algum nível com o mais fraco e que esta relação não é necessariamente opressora e nem precisa ser.

Não há como permanecer uma separação entre produção, economia, consumo, processos decisórios, judiciário, segurança, alimentação e saúde sem a compreensão dos efeitos de interligação entre cada elemento destes, de nossas vidas e do mundo dito natural.

Não há mais espaço, na verdade nunca houve, para humoristas ironizarem em rede nacional em programa de entrevista a luta contra a caça às baleias perguntando para que elas servem (Chico Anysio no programa “Jô onze e meia”).

Não há mais espaços para a defesa de crescimento econômico, de reformas urbanas, políticas, sociais sem a discussão sobre recursos naturais, responsabilidade no consumo, papel da indústria, da cultura de fábrica, direitos comunitários, laços de solidariedade comunal, conhecimentos tradicionais, clima, hidrologia,etc.

Não se pode defender um crescimento econômico a todo custo projetando-se no macro ignorando-se o efeito disso no cotidiano populacional. Mais, é criminoso pensar o macro ignorando-se o somatório de efeitos de processos decisórios nas múltiplas realidades do micro e seus efeitos.

Em suma, não é possível que se mantenha a cegueira optativa de entender que a ampliação de hidrelétricas na Amazônia tem efeitos daninhos lá e esses efeitos ecoam na crise hídrica do sudeste.

Não é possível ignorar que a ampliação do consumo de energia que segundo os “planejadores” da economia obrigam a investimento na ampliação de hidrelétricas e térmicas ocasiona ampliação do aquecimento global, mudanças ecológicas que interferem no regime de chuvas, na sobrevivência de espécias e que isso tem efeito amplo que vai da crise hídrica à ampliação de presença de contaminação por doenças antes desconhecidas a partir de insetos, por exemplo.

A centralização e hierarquização da política, dos processos decisórios, da própria lógica econômica, do estado, dos governos, da ideia de PIB, tudo isso é em si anti ecológico e por consequência criminoso e anti vida.

Enquanto a Economia busca a normatização,regulação e administração (Oikos = Casa; nomos = Costume ou lei) do lugar onde se vive, a Ecologia busca entender o funcionamento do lugar onde se vive (Oikos = Casa; logos = estudo ou lei). E quando a normatização ocorre antes da compreensão a coisa toda degringola.

Com o devido perdão da simplificação filosófica a partir da semântica, a ideia não distancia-se de uma análise mais profunda da relação entre percepção hierarquizante, centralizadora e autoritária do estado e a ausência nas tradições políticas estatistas de qualquer compreensão ecológica e resistência à ideia de horizontalidade, de gestão comunitária, citadina, de bairro, de rua a rua, de recursos, direitos, justiça, segurança, saúde.

Essa ausência de percepção, essa ausência de entendimento do coletivo, do comunitário, da cidade, bairros, vilas e ruas como eixo da vida cotidiana, das organizações sociais, dos grupos sociais, como fundamentos e não como elementos secundarizantes e secundarizados, provocam a percepção de que é lógica a instalação de grandes siderúrgicas que destroem a vida de pescadores artesanais e o bioma de Santa Cruz, como no caso da TKCSA ou implantam termelétricas como a de Pecém no Ceará, que se alimenta de enorme quantidade de água em uma localidade com enorme carência de recursos hídricos ou ainda pior no caso de Belo Monte, onde além de destroçar a vida de comunidades indígenas e populações tradicionais ainda secam uma grande área do rio Xingu atingindo desde aldeias indígenas até o óbvio, a vida animal e vegetal ali presente, sem considerar em nenhum momento o que isso vem a causar nos demais biomas, nas demais relações ecológicas que respondem pela sobrevivência do planeta e na nossa própria sobrevivência.

Esse descolamento não é sintoma, é a causa do processo de crise ecológica que se tornam visíveis com a crise hídrica e climática, mas cujos efeitos são muito mais amplos, talvez sequer tenhamos a compreensão total destes efeitos.

Até hoje não se tem compreensão completa dos efeitos do vazamento de petróleo das plataformas da British Petroleum no golfo do México. Os efeitos das mudanças climáticas, causadas pela ação humana em especial pela queima de petróleo e outros combustíveis fósseis, possuem efeitos claros e em andamento (Como a crise hídrica mundial, e mais especificamente no sudeste brasileiro), já denunciados e anunciados, porém há uma relação de reação em cadeia para cada efeito deste, a partir do somatório de danos ambientais localizados, que não se pode nem matematicamente medir, dada a grandiosidade.

Essa grandiosidade ocorre porque se pensa o macro ignorando os efeitos de cada ação no âmbito micro e como isso se reflete a partir do somatório de efeitos e das reações em cadeia produzidas. Pensa-se no macro sem na verdade se pensar no macro, ou entende-se o macro sem entendê-lo como um somatório de micros.

A chuva que falta e causa a crise hídrica também seca plantas que deixam de alimentar animais que deixam de ser alimentos de outros animais maiores. E o problema ai não é o aumento de preço no mercado, é a possível extinção de espécies, cujos efeitos não são facilmente mensuráveis e tem tudo pra produzir mudanças no meio ambiente que causam outros tantos danos e mais reação em cadeia.

Em resumo a partir do desprezo pelos processos micro históricos, no interior dos grupos sociais, dos biomas localizados, das micro relações no meio ambiente, a partir da estruturação de uma ideia de relações sociais, econômicas,etc que ignoram a vila, a planta, o bicho e só pensem no nacional, no estado, na transnacional, no continental e no mundial, mas do jeito errado, o que se pavimenta é a destruição estrutural e totalizante de tudo isso.

Por isso the Bookchin is on the table, porque é preciso descentralizar, ecologizar, organizar a transmutação de baixo pra cima, destroçando a generalização, a hierarquização, a ausência de diversidade, o autoritarismo da sociedade que naturaliza o estado e do estado propriamente dito.

É preciso ser mais vila e menos Governo, mais planta e menos plantação, mais bicho e menos manada.

The Bookchin is on the table, basta ler, basta agir, basta ser ecológico e horizontal, porque é lógico, porque é eco.

Vamos falar de pedágio urbano, amiguinhos?

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Bem, vou começar colocando que não vou dar exemplo nem de Londres, nem da Groelândia, nem do Rio e nem da cidade do Papai Noel no Polo Norte. Vou partir de princípios do conceito de pedágio urbano, beleza?

1 – Monetarizar o direito de ir e vir colocando um valor neste direito, ou seja, limitando o direito de ir e vir a quem pode pagar por ele é política popular? E problematizar isso é ser de direita? Olha, a volatilidade dos conceitos e categorias é enorme, mas essa me pegou de surpresa

2 – Monetarizar o direito de ir e vir colocando um valor neste direito, ou seja, limitando o direito de ir e vir a quem pode pagar por ele é uma política de redução de carros na rua ou de redução de carros de quem não pode pagar pela sua entrada nos belos centros das grandes cidades? Problematizar isso é ser elitista e de direita? É mesmo? Uau, surpreso de novo.

3 – Monetarizar o direito de ir e vir colocando um valor neste direito, ou seja, limitando o direito de ir e vir a quem pode pagar por ele é uma ação de política de redução de carros? Olha me parece mais eficiente reduzir a produção e o consumo de carros e de combustível fóssil a partir da redução de subsídios a ambos. Sim, amiguinhos, estou falando de aumentar o preço dos carros e do combustível fóssil (Que por mim era suspenso o uso por portaria).

4 – Vamos falar de transporte público? Monetarizar o direito de ir e vir colocando um valor neste direito, ou seja, limitando o direito de ir e vir a quem pode pagar por ele em um cenário de caos e falências dos transportes públicos é política de esquerda? opa, sós e for da neo-esquerda estrelada, porque sem uma medida prévia, e que levaria uns bons dez anos, de revisão de todo o sistema é IMPOSSÍVEL que uma Monetarizar o direito de ir e vir colocando um valor neste direito, ou seja, limitando o direito de ir e vir a quem pode pagar por ele não seja ela mesma a interrupção do direito de ir e vir dos mais pobre sou pior, sua precarização a partir de um transporte público incapaz de atendê-lo como o mínimo de civilidade.. E não, amiguinhos, não é o caso só do Rio, fica a dica.

5 –  Vamos falar de política de secessão no Rio de Janeiro?  Cês sabem que a secessão entre pobres e ricos é uma tradição carioca como o futevôlei, o chopp no fim da tarde, o samba, o suor, a cerveja, o arrastão em dezembro e a PM matando pobre? Pois é, inclusive tem um artigo mui bacaninha da Gizlene Neder, chamado Cidade, Identidade e exclusão social, que trata da lógica de secessão no início do XX que levou aos píncaros da construção de m corredor sanitário entre o Rio aquilombado  e o Rio aburguesado. Este corredor não foi apenas uma exceção, ele é a regra. A ideia de uma cidade partida é uma ideia que nasce com a república e que é implantada a partir da derrubada de cortiços para iniciar a expansão urbana moderna  no centro da mui leal. qualquer projeto que não seja um projeto nitidamente de esquerda nesta cidade é herdeiro de Barata Ribeiro, Pereira Passos e outros tecnocratas demolidores que entraram para a história como cabeças de ponte de uma política elitista. Paes se coloca como fã de Pereira Passos, é bom lembrar.

Então amiguinhos, vamos ter cuidado, nos informar, ser mais responsáveis sobre nosso volumoso dedo indicador a respeito de quem vai ou não para a direita ou sobre o “elitismo’ de quem é contra medidas que não são exatamente fáceis de serem identificadas como esquerda, e mais, não são exatamente fáceis de ser descontextualizadas de um projeto de cidade excludente que não nasceu ontem.

Aliá,s fica a dica: O projeto de cidade excludente do Rio de Janeiro que permeia toda a sua história é também um modelo de cidade para o Brasil, e não é de hoje.

É de bom tom para cagar regra ter o que cagar, fica a dica.

Sobre os Black Bloc, professores e a miopia – Retratos de discussões no fervo

divu1Vou começar pelo início:

Não adiante escrever “Aos que se interessam pelo tema: o black bloc teve uma participação engajada, decidida, ativa e militante para criar as condições ideais que a polícia queria para reprimir e acabar com nossa manifestação” e depois dizer que não tá responsabilizando os BB, independente da ressalva feita antes, depois, durante, no meio, ou na transversal.

Se não quis dizer isso reescreva. Se não soube se expressar reescreva. Se não foi isso que quis dizer reescreva. É bastante simples, o resto é ou estar mais perdido que cego em tiroteio ou literalmente não entender patavinas ou ter a critica, ter escrito, culpar mesmo e não querer assumir com o ônus que isso acarreta.

Desculpem ser direto e reto, tem algumas questões que acho um tanto quanto complicado de estarem sendo ignoradas:

  1. O flagrante apoio que a base da categoria dos professores deu aos Black Bloc em assembleia com cinco mil pessoas no Rio.

  2. A quantidade de enquetes, esquetes, entrevistas, pesquisas que indicam que a população não tá recusando nada os BB.

  3. A quantidade de material problematizando os BB, seja em site, seja em artigo científico, etc.

sesc_festclown_2012-_palhaco_xuxuNão somos crianças discutindo no ginásio, somos militantes com responsabilidade política uns com os outros, com o partido, com os movimentos e ser simplista neste campo é levar ônus ao coleguinha do lado, ao partido e ao movimento e levar preços a quem não comete o mesmo tipo de equívoco/tem a mesma posição, etc.

Há uma nítida criminalização dos BB pela mídia/governos e tendo eco nos partidos da esquerda como PSTU/PSOL, sim, me desculpem, eu sei ler.

Retórica à parte, critica sobre a organização dos Black Bloc, fetiche de tática, etc, é uma coisa completamente diferente do que dar parabéns aos BB porque a polícia, essa entidade filha da puta de per si, mete a porrada, me desculpem. É como culpar o moleque de dez anos que chamou o totó que é um rotweiller com raiva pelo cachorro mordê-lo e à rua toda. A culpa é sempre, sempre, do dono do cachorro.

“A Origem histórica dos BB” é fundamental conhecer, é uma história e tem raízes em autonomistas marxistas na Alemanha dos anos 1970 e tem uma longa história e adaptações por onde passou e ao que parece aqui idem. Aqui inclusive tem mais organicidade do que o normal na Europa e se relaciona muito com as ocupações urbanas, conheço antropólogos que encontraram come elas em etnografias sobre ocupações urbanas.

downloadReduzir inclusive os BB às manifestações é equívoco, porque:

  1. Não são um grupo.

  2. Não funcionam somente em manifestações e tem relações menos com anarquistas, que os criticam, e mais com autonomistas marxistas.

  3. Criticar é necessário? Pra quem acha que deve ter crítica é, mas antes de mais nada criticar sem refinar é chutar tijolo.

  4. Tem de entender e tem de entender antes de mais anda que não é disputar com eles, mas disputá-los.

  5. E o problema médio das análises é exatamente a demarcação de diferença com eles como disputa com eles.

E ai me desculpa, vou pegar um dado de um amigo: análise de discurso no trabalho historiográfico me fazem ler com quase clareza absoluta a linhagem de uma declaração. É mais que “intelectualismo” é meu trabalho e o eixo do discurso de parte da esquerda do PSOL e de companheiros do PSTU é muito similar e sim, demarcam para estabelecerem locus político diferenciado, só que partem de uma série de equívocos e artifícios retóricos para estabelecerem estas diferenças menos por entendê-las e mais pela necessidade de disputa.

E sim, não adianta dizer que a culpa é da repressão, mas os BB provocam… esse é igual ao discurso da Maria do Rosário, igualzinho..

Falar de junho sem dizer que os BB participaram é piada. Dizer que “A direção do ato foi” é piada.

imagesPorque se a gente for tratar assim vou mais longe: como é que a gente situa junho fora das rebeliões indígenas de 2012 pra cá?

Como a gente situa Junho sem a Aldeia maracanã, detonada na ensecadeira do Xingu,etc?

Como a gente situa 2013 fora do esteio da ação direta do MST na Aracruz que detonou o laboratório? As rebeliões de favela, Resistência em Pinheirinho?

Como a gente situa junho, ontem, anteontem, Rio, SP, PA, Fortaleza, Recife, fora da ampliação da militarização das polícias, do aumento da morte da juventude negra, do aumento de mortes no campo, da maior precarização do trabalho dos jovens da periferia, do resultado dos primeiros formandos das universidades da Era Lula após a “inclusão” de milhões de jovens que esperavam uma vida melhor após se formarem na universidade?

O problema é a tática? O problema é a ação direta? o problema é o momento da ação direta ou o processo?

Gente, sem olhar o maldito processo histórico e pegando recuos de médio a longo prazo, analisando o hoje a partir do possível arco de influências prévio, da história da tática, do histórico da “direção” de movimentos, do papel e da inserção do PSOL, PSTU, PT, da crise de representatividade da esquerda como um todo, e não tô falando de mensalão e corrupção, a gente vai virar girando que nem peru pré-abate.

Sem olhar o processo histórico vamos fazer como aquele “Marxista” de galinheiro que diz que a greve dos professores é de direita porque contesta um governo “de esquerda” incapaz de resolver o problema da liquidação da educação para o mercado e que aliás concorre como sócio da privatização da educação não só como governo federal, mas como governo estadual e municipal.

Condenar os Black Bloc optando por uma busca frenética de diferenciação como tática de ocupação de um espaço cuja motivação de existência tá muito além da ação direta em si é como culpar o furacão por devastar uma cidade, cagando pro aquecimento global e pelo fato do uso de combustíveis fósseis ser diretamente influente na sua ampliação.

Pensemos amplo, pensemos além, saiamos do simples, do simplório, do que tá só agora.. Vamos ser Marxistas?

images (1)É fundamental ter menos fome de certezas e mais lidar com dúvidas constantes e elencar o maior número de quadros e dados possíveis no liquidificador do concreto abstrato para depois voltar pro cotidiano no tal movimento dialético e ver qualé. apostemos mais, apresentemos discordâncias, dúvidas. Digamos que não temos certeza se concordamos com a tática, mas entendemos o que leva a existir os BB e entendemos que o BB é mais resultado do que causa.

Se queremos mesmo revolução, quando ela vier vamos dizer que não compactuamos com depredações? Vamos reconhecê-la?

A dimensão da utopia, a revolução e os novos Lênins

 Road_to_utopiaTratar de mudança política não é exatamente simples, tampouco receita de bolo. A dimensão da transformação tem tantas miríades de sentidos possíveis subjetivos a serem lidos em atos, palavras e movimentos, que a simplificação de um método ou de uma ideia de estado, ou de mesmo uma só ideia de revolução é delírio simplificador.

Se ler a realidade concreta fosse fácil e apontasse para um só sentido unitário não haveria desde sempre um mar de pensadores mundo e história afora, cada um com sua percepção de uma realidade, de uma verdade ou até da não-verdade.

A questão é que cada contexto histórico, cada conjuntura, aponta sinais identificáveis de novas formas que a multidão de gentes por vezes denominada “povo”, “massa”, “massona” ou “povão” (quase sempre por quem se aparta dela para defini-la com distância segura) interpreta se não o real a ruptura com o que entende como sistema ou peso opressivo de alguma realidade.

Cada contexto histórico traz suas insurgências, traz suas permanências, traz suas rupturas e conservações e é necessário que cada pensador ou militante que pretenda transformar este real lê-las, olhá-las nos olhos, preocupados menos com encontrar a verdade verdadeira única de todas as coisas e mais com antecipar minimamente uma tática de intervenção que consiga atrair o máximo de gente possível para oque defende como eixo de ações transformadoras.

É, amigão, to falando de convencer pessoas que tua tática revolucionária é o lance.

img_ju427-06bNeste contexto atual, por exemplo, o próprio questionamento da relação entre movimentos, partidos e ativistas com o cotidiano político é questionado. A própria relação entre os movimentos, as pessoas e a atividade política é jogada aos leões em busca de demolir concepções quadradas de vida, de militância, de relação com vidros, vidraças, mundo, ambiente, amor, mídia.

A dimensão contestatória não tá ai para fingir que não vê a frase maldita cheia de homofobia do sujeito que em tese diz que quer mudar o mundo.

A contestação, caras pálidas, não tá vestindo o fraque mediado do fanfarrão da esquina, tampouco o papo brabo de que “povão é assim”.

A contestação quebra vidraça do Itaú,a contestação arrebenta a secadora do Xingu, invade usina, ocupa Câmaras, derrete leninismos de salão querendo mais que conversinha nas terras Quilombolas, na avenida Paulista ou na praça onde Feliciano-RS prendem pessoas que se beijam em um espaço público ocupado por ele indevidamente em nome de uma só vertente de uma só fé, atropelando a laicidade do estado, atropelando a democracia de um estado cujo emblemático simbolismo de um Pastor Deputado (jamais um Deputado Pastor) chamando a polícia para reprimir lésbicas se beijando EM ESPAÇO PÚBLICO é eloquente.

street_art_24A contestação não trata a dimensão do sonho como um “Além da Imaginação”, uma “Twilight Zone” promovida por esquerdóides, amiguinhos. A contestação chegou à sala de aula, e não na cabeça de estudantes, mas na de professores precarizados em greve numa das principais cidades do país.

A contestação tá na rua derrubando um dos governadores centrais para a política do PT e para concepção de cidade mercadoria, de mundo mercadoria, de Brasil Grande neodesenvolvimentista com fome de petróleo, com fome de carbono, de escolas, de postos de saúde, de consumo que nos consome enquanto gentes a trabalhar doze, treze, quatorze horas para pagar os carnês das dívidas enquanto deixamos a vida no prelo.

A contestação pegou a dimensão do sonho gritando que não era por vinte centavos enquanto militantes amestrados pro revistas, blogs e sites de partidos acostumados com a cadeira acolchoada do poder dizia se tratar de Vândalos e Baderneiros.

imagesA dimensão do sonho voltou numa contestação mascarada que lei nenhuma vai desmascarar e enquanto isso ainda existem citadores compulsivos de Lênin procurando pelo em ovo pra justificar qualquer coisa em nome de mandatos acomodados, acostumados a pedir em vez de exigir, a criar espantalhos para a fome de moral e bons costumes de quem pede o fim da corrupção como se pedisse pães franceses na padaria mais próxima.

E enquanto a dimensão do sonho renasce com utopias múltiplas, dissonantes e polifônicas, como deve ser, a exigência de novos Lênins é clara, imensa, nítida. Mas exigem-se novos Lênins com menos fome por construir estacas fundadores de novos países e novos estados, mas canais para o fluxo contestatório passar derrubando represas.

São precisos Lênins que construam o diálogo, um diálogo amplo, que aprendam, que ensinem, que se joguem, que quebrem, que requebrem, que riam, que sambem, que ouçam a polifonia menos buscando a síntese perfeita e mais aprendendo que ruptura pode sim rimar com gostosura, com liberdade, com vontade e com verdades, sim com s, por muitas, imensas, gigantes, que nunca dorme, que se soltam noite afora quebrando tudo até a última ponta para derrubar Cabrais e outros ditadores mal-acostumados a achar que a voz das ruas é rouca, enquanto sempre foi doce.

images (3)São precisos novos Lênins prontos a divertirem-se recuperando a utopia, a dimensão do sonho em que Garibaldis, Bakunins, Marx, Engels fizeram a primavera dos povos.

Porque sempre precisamos de mais primaveras.

O julho Papal e a má fama de Cabral

Sérgio-Cabral-e-o-Papa-por-PelicanoO que significa o Papa Francisco I no Brasil neste mês de Julho?

Este texto não começa à toa com uma pergunta, pois se pretende menos uma afirmação e mais ser um provocador, um questionador, talvez para que as respostas sejam menos soluções e mais apontamentos.

Existem vários quadros possíveis para responder a esta pergunta e outras, alguns desenhos são cabíveis de serem feitos a partir de indagações no plano da política local, nacional, internacional, na relação entre religiões, entre a Igreja Católica e a mídia, entre o Governo brasileiro e o Vaticano, entre os megaeventos e os planos do estado e entre a população e os poderes.

Um deles diz respeito ao que foi projeto pelo Prefeito do Rio, Eduardo Paes, e pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, no que tange aos negócios que seriam/foram feitos em nome dos mega eventos como a Copa e a Olimpíada, e em menor grau a Jornada Mundial da Juventude, e o resultado final do impacto da JMJ no cotidiano de ambos e mais, na imagem da cidade/estado do Rio de Janeiro para com o mundo, preocupação número um dos governantes/gerentes do capital e cujos gabinetes tem sido chamados pela oposição, a meu ver com razão, de balcão de negócios.

Deu certo? O investimento em nome da venda da Cidade do Rio de Janeiro como cidade-evento, ou cidade-mercadoria, teve retorno? Fortaleceu a cidade enquanto marca? Fortaleceu a cidade enquanto infra-estrutura?

Acredito que as panes no sistema de transporte, na própria infra-estrutura erguida em Guaratiba e que sucumbiu à lama das chuvas, responde às perguntas e aponta para um caos maior em eventos com previsão de maior envergadura na exigência de transportes,etc. Aliás, um dado a se pensar é que o prefeito e o governador declaram feriados nos dias da JMJ, parciais ou não, e que para usar o Metrô o cidadão carioca que não tivesse passe especial era simplesmente barrado, e mesmo assim deu pane.

Outro quadro é da relação entre o povo carioca, em protesto quase diário pela queda de Cabral desde o fim de Junho, e os governantes diretos e indiretos, Eduardo Paes, Sérgio Cabral e Dilma Roussef.

A presença do Papa não arrefeceu ânimos protestantes, e se os protestos tinham menos gente, não era, ou foi, desprezível a quantidade de protestos com cerca de cinco mil participantes tanto na sede do governo do estado quanto nas proximidades da residência de Sérgio Cabral, e todos sendo recepcionados mais cedo ou mais tarde pela violência policial que atira bombas de gás lacrimogêneo em hospitais.

A relação entre protestos e violência policial, que Cabral usou tentando desviar denúncias contra si, atingiu um limite tão grande que levou o governador a criar uma comissão especial para investigar vandalismo, investindo na dicotomia Vandalismo x Policia, que teve de revogar ao fim de tantas denúncias de inconstitucionalidade.

Para completar o nível de perda de controle do governador por sobre as tropas e aliados, o prefeito do Rio, Eduardo Paes, em entrevista exclusiva à Mídia Ninja, fez questão de se descolar do aliado mor, ou ex-aliado mor, Sérgio Cabral.

Cabral, ao fim e ao cabo, ao revogar o decreto que criava a CEIV (comissão especial de investigação sobre vandalismo) entregou às baratas o Secretário de Segurança do Rio e o comandante da Polícia militar como responsáveis diretos pela truculência policial, como se o comandante em chefe da Polícia, ele Cabral, não tivesse nada a ver com isso.

A truculência policial ocorreu também com o Papa no Rio, pra ampliar o grau de desmoralização do Governador, ou seja, como cidade mercadoria o Rio de Janeiro fracassou tanto na infra-estrutura para megaeventos quanto na habilidade de conter manifestações sem a proverbial truculência da polícia ainda militar do Rio de Janeiro.

Para agravar a situação o quadro expôs danos quase irreversíveis, a um ano da eleição, ao muro do outrora paraíso da popularidade de Dilma, Cabral e Paes e expôs também crises palacianas mal ditas pelo cotidiano de sorrisos e felicidades entre PT e PMDB.

As resposta de Cabral aos protestos ampliaram-nos e mais, derrubaram a popularidade dele, de Paes e de Dilma, que por razões de “governabilidade” não tem como descolar-se imediatamente do outrora primeiro aliado.

A lusitana roda ainda trouxe consigo o PT Carioca em profunda crise, já que o partido tinha membros entre os que filmavam os movimentos a partir da mídia alternativa, entre os próprios protestantes e entre quem condenava os protestos a partir de uma lógica delirante que os protestos contra Cabral, assim como todos os protestos de Junho para cá, eram no fundo um golpe armado contra a toda poderosa salve salve iluminação popular do Partido dos Trabalhadores em todos os níveis de governo, governabilidade e aliados.

Essa crise do PT não passa despercebida aos aliados ou adversários, e se reflete na lógica pressão para que o PT saia dos governos Cabral e Paes, e mais, ecoa na imagem de Dilma que tentou se construir como uma governante que “ouve as ruas” tentando ignorar a extrema inabilidade da mesma em responder aos protestos sem emprestar a Força Nacional a governadores, inclusive tucanos.

Aliás, essa crise do PT se reflete imediatamente na dicotomia entre estar nas ruas e nos governos, protestar contra Cabral enquanto sua presidente da república mantém um apoio explícito e tem em metade dos programas construídos no Rio como testes para uma plataforma nacional (UPPs, UPAs, Megaeventos) e mais, ser “esquerda” com políticas de direita, sendo secretário de direitos Humanos em um governo que os viola com sua polícia truculenta.

No plano da relação entre o Governo Brasileiro e o Vaticano a coisa fica um tanto mais enrolada.

Desde a assinatura entre o Governo Lula e o Vaticano de tratados que buscavam minimizar a aproximação oficial entre o PT e fundamentalistas religiosos ligados ao neo-pentecostalismo a partir do reforço do reconhecimento de instituições educacionais e de “caridade” vinculadas à Santa Sé, reforço na isenção tributária de igrejas,etc, o Governo do Brasil buscavam elementos simbólicos que deixassem clara que as relações entre o Governo do Brasil e evangélicos não seriam as únicas que o Partido dos Trabalhadores travariam para manter um grau de governabilidade e de laços e alianças políticas com as bancadas ligadas às religiões.

Ao fazê-los, os tratados, o Governo Brasileiro iniciou um processo de aproximação que com o governo Dilma Roussef e sua boa relação com o atual Papa Francisco I, ganhou fôlego.

Ao mesmo tempo a Igreja Católica precisava também do Brasil para focar sua ação “evangelizadora” e fazer uma demonstração de força ao mundo exatamente onde as igrejas protestantes mais cresciam. E a JMJ deu a ambos um meio de fortalecer laços e de demonstrar poder.

As reações dos Evangélicos fundamentalistas não tardaram a aparecer e isso pode ter um preço na costura da ampla rede de laços e alianças que o PT e o Governo travaram para manterem-se governando uma coalizão outrora poderosa, mas que diante da reação popular parece ruir a olhos vistos.

Outro elemento desta relação foi a aposta da principal rede de televisão do País, a Rede Globo, na transmissão da Jornada Mundial da Juventude como evento prioritário, invadindo inclusive ou outrora sagrado futebol de domingo e carro chefe da emissora.

A emissora, que estava se aproximando das lideranças fundamentalistas e buscando um contraponto à Rede Record, e outras emissoras que centravam fogo em programas voltados aos evangélicos neo-pentecostais, pela via do mercado Gospel, ao partir para a transmissão do evento católico como foco prioritário de sua programação optou deliberadamente por fazer parte da órbita da política do Vaticano de demonstração de força no principal País Católico do mundo, o Brasil, que via o avanço das igrejas evangélicas e de pastores como Marcos Feliciano dizendo que a igreja Católica era uma religião decadente.

Esta aposta se deu ao mesmo tempo em que a emissora mantinha-se como porta-voz da polícia militar e do governo do estado no que tange à manifestações populares, ó rompendo quando as imagens que circulavam via redes sociais impediam uma luta eterna contra o óbvio. A mesma relação se repetia na relação da JMJ e a cidade vendida pelo prefeito como pronta para megaeventos, só rompida quando as falhas no sistema de transporte se negaram a acompanhar a venda do mundo da fantasia.

Dá pra fazer mais relações entre a emissora mor do Reino e o principal partido no Brasil de hoje, o Prefeito Eduardo Paes e o Governador Sérgio Cabral, mas fica para outra hora, deixando apenas a sugestão de quem recebe mais verbas do Governo Federal entre emissoras e empresas de mídia.

Este julho Papal criou muitas dúvidas, apontou cenários, revelou fraturas e caminhos que muitas relações entre quadros podem se dar. Indicou falhas no Rio como mundo perfeito que vendiam para Inglês ver.

Nós que fomos um Rio da mais perfeita governabilidade, acordamos e somos um Rio que protesta com Papa e tudo.

Nós, que fomos um Rio que amava Dilma, Cabral e Paes, acordamos gritando a plenos pulmões que o Papa é BOPE.

Nós, que fomos um Rio pintado à mão pelos melhores publicitários, acordamos com um Papa e a ideia de que somos um Rio menso preparado, mais cheio de lama e gás lacrimogêneo do que supunha a vã filosofia do coro dos contentes.

Nós, que fomos um Rio de obras, agora somos um Rio que pergunta onde está Amarildo?

Não há luz após o túnel

SEM_AGUA_395825217O cotidiano do Carioca é iluminado por um sol escaldante, por balas escaldantes e por um calor que percorre ano a ano a cidade com requintes de crueldade pra quem não sofre o bafejar da brisa marítima full time em seu dia a dia.

O epíteto “cidade Maravilhosa” cantado em verso e prosa no ufanismo abestado de nosostros esconde omissões e ironias. Omissões dado que escondem que esta cidade maravilhosa representa o erguer da cidade aburguesada da Zona Sul-Centro por um Pereira Passos, que ao demolir as ruas de um Rio antigo em busca da superação da colônia, não só demoliu e “modernizou” a cidade, como enviou vagas e vagas de pobres às distâncias dos subúrbios, zonas rurais da época (atual zona oeste) ou encostas das quais historicamente estes pobres eram atingidos por deslizamentos, frutos das fortes chuvas anuais, e ainda eram culpados disso pelos veículos de comunicação e pelo poder público, como ainda são.

imagesEnquanto a mídia carioca bovinamente e bovinizantemente canta loas à sua “cidade maravilhosa” todo dia falta água, todo dia falta luz, como já dizia a piada histórica que o povo suburbano cantava em paródia à famosa marcha também chamada “Cidade Maravilhosa” ao dizer “Cidade Maravilhosa cheia de porcaria, de dia falta água, de noite falta energia”.

É claro que a crítica honesta e irônica do povo carioca, tradicional veia de resistência de quem tanto sofre/sofreu nas mãos de um poder público que emulava/emula a feitoria da época da escravidão, é bem vinda, só que essa ironia também esconde uma certa parcimônia com o lidar com os conflitos inerentes à ausência de serviços públicos dignos, nem cobro de qualidade apenas dignos, a toda a massa que além do túnel Rebouças repousa seu status de maioria da população em uma cidade aquilombada, abandonada e deixada à própria sorte da manha, da graça, da raça e dos dribles necessários à truculência da polícia, da milícia, do medo, da dor.

EnergiaEssa parcimônia não veio do nada, não veio de uma característica inata, “natural”, de um povo, nem tampouco é fruto do encanto pelo belo quadro geográfico que nos cerca, mas é fruto também de violências e sevícias históricas que um povo dolorido é submetido desde antes de uma Revolta da Vacina quase oculta da história.

images (1)Essa parcimônia é fruto da pesada carga de convencimento e malandragens da resistência cotidiana que em suas próprias regras e formas dá um jeito de subjugar o público em torno de negociações semi-privadas, ou de uma privatização coletiva e marginal, feitas em uma quase leitura popular do liberalismo histórico que cerca o projeto de cidade nascido com a República.

Se o poder é liberal em sua robusta política de Robin Hood ao contrário, construída em torno da privatização da res publica em prol de sua transformação em síndico da zona sul sociológica, o povo é liberal na tradução de uma única forma real de combate a seu abandono: cria-se leis próprias que abraçam a coletividade em torno de gatos, de fechamentos de rua, de festas barulhentas, de fogos, de kombis e vans, de mutretas, de malandragens, de controle social comunitário da vida cotidiana.

sergio-cabralEssa tradução do liberalismo do poder é óbvio que não cabe apenas em boas iniciativas, também alimenta o ilegal e violento esporte das milícias e tráficos. Também alimenta clientelismos, trocas, fisiologismos. Essa tradução torna o Rio de Janeiro uma cidade bárbara, que alimenta a morte de Traficantes Matemáticos como se fosse troco de bala, e assassinatos de líderes comunitários, crianças, como efeito colateral da necessidade de manutenção da máquina de uma (in) segurança protetora das fronteiras da orla e cuja lei naturalizada pós-túnel Rebouças repousa no altar do “é assim mesmo”.

Enquanto isso a cidade convive com a considerável piora do já imenso descaso de serviços públicos como Light, Net, CEDAE com o lado que menos importa da cidade, o lado que turista não vê.

images (4)Enquanto isso o prefeito se esconde, o Governador se omite, a sociedade assiste sem reação à manipulação cotidiana de suas principais emissoras de TV, dos principais jornais, mas todos gritam em uníssono “imagina a festa”.

Não há luz no fim do túnel, não há luz após o túnel, nem água, nem dignidade possível, nem transporte, nem escola, nem saúde, muito menos paz.

images (5)A pacificação prometida é ocupação, a modernização prometida não é para o nosso bico.

Há parques, mas não há água. Há parques, mas não há energia e pra festa, desculpem, não fomos convidados.

A desabolição

imagesNão nasci de pele preta, mas encantado com as pretas formas, línguas, mundos, deuses, sons, me empreteci como pretejido de um Itamar Assumpção que desconhecia ainda nos idos de 1988 quando vi “Tenda dos Milagres” em uma tela de TV.

Em “Tenda dos Milagres” enxerguei o Orixá do Anúncio visto pela Ialorixá cantada pro Caetano em “Santa Clara Padroeira da Televisão”. Em “Tenda dos Milagres” me reconheci preto.

Naquela época o primeiro impacto do que entendia como minha gente foi o entendimento pela fé que Xangô, Ogum, Oxóssi, Logun-Edé, Oxum e Iansã falavam mais pra mim do que Jesus e seus santos.

escravatura no BrasilUm segundo impacto foi quando já militante entendi que aquela opressão aos escravos em 1888 permanecia numa chibata de classe, numa chibata genocida, legal, instituída, protegida por uma estrutura cruel, violenta e que só seria removida com a espada de um Ogum feita de raça, graça, manha e tambor.

images (1)Eram idos de 1992 e um irmão de santo foi expulso de sala de aula por uma professora por estar com quelê, lenço amarrado na cabeça recém-feita para Ogum. Ali eu era apenas um irado e irracional estudante branco incapaz de entender com clareza o porque tanto me ofendia aquela estupidez, aquela ação imbecil. Ali eu me sentia ofendido, cruelmente ofendido e não apenas na sutileza da superfície da indignação racional, ali em me sentia chicoteado na cara, na alma, na fé, na história. Ali eu decidi ser preto.

Óbvio que essa decisão não me torna preto, não no sentido crasso, não no irmanar do ônus e do bônus, a mim é fácil fugir dos estereótipos pejorativos ligados ao negro, a mim é permitido desistir quando necessário, da pele preta. A mim, por ter a pele branca, foi dado o bônus da possibilidade covarde da omissão.

images (3)Porém no seio do que eu sou a decisão de ser preto se mantém, quando vejo o orixá no anúncio, quando ouço o trovão e tenho medo, amor, vontade de ser chuva, quando vejo na encruzilhada a proteção contra o mal e o mal que me é arma contra meus inimigos. A decisão de ser preto me deu o olho do que eu não via, o ouvido do que não ouvia, o som das pedras, da cachoeira distante, o medo, o horror, o dom, a glória e sobretudo a empatia, o ser o outro que nunca fui.

images (2)Quando me tornei preto me tornei gente, me tornei gay, me tornei mulher, me tornei sindrômico, me tornei transsexual, me tornei peão, me tornei lumpem, me tornei eu. Meu primeiro passo pra me despir dos privilégios que me eram facultados foi dado a partir de um Ojuobá de Jorge Amado descrito por uma irreconhecível Rede globo em Horário nobre, o passo definitivo veio pela resistência ante o preconceito racista de uma imbecil e os demais se fizeram pelo estudo e pela luta.

Hoje ainda me sinto perdido em meio a aproximação concreta da luta anti-racista via companheiros do Instituto Búzios e via partido, porque por mais que a decisão tenha sido concreta, o ser preto por decisão e não por condição objetiva não me permite o ser completo. Sou mutilado da inexistência da negritude de per si.

E lendo e relendo as abolições nunca vindas completas, sempre apartadas da realidade pela resistência absoluta da sociedade a permitir que seus privilégios, chibatas, senzalas, sejam demolidas, me vejo perdido na liberdade opressiva dos que se sentem senhores.

1192741358_fDesabolido da liberdade de resistir me sinto morto, morto na necessidade meio brocha de subjugar alguém acorrentado ou por masmorras ou por misérias, ou por uma lógica redutora de quem não é branco como o resto da matilha é reles coisa.

Se não tenho a existência da negritude de per si, ao me ver branco sofro a desabolição da escravidão, me sinto senhor, e ai me sinto cativo em uma rede de miasmas, de crimes, de castrações, de medos, de falsa evolução, de falsa hegemonia, uma hegemonia de cetro e não de pleno direito a si mesmo.

Na desabolição de mim mesmo, na desabolição da negritude emprestada me vejo como a mediocridade de uma superioridade dependente de guardas armados, de feitores, de padres, ignorante do outro, dos songai, dos malineses, dos ganeses, dos iorubá, dos ashanti, dos daomé.

Ao me desabolir da negritude e retornar à condição de uma superioridade mantida a fórceps da limitação do outro por trapaças e preconceitos, me sinto morto, morto na negação da África e ai morto na negação de mim.

osvaldo-cruz-29Ao me desabolir me sinto menos Prata Preta e mais Pereira Passos, menos Osvaldão e mais Médici. Menos Zumbi e mais Domingos Jorge Velho, e me sinto menor, mais morto, mais torto, menos gente.

Nesse treze de maio, um treze que comemora um documento assinado que foi fruto de sangue, manha e dança, luta e amor, horror e suor de pretos e pretas que em trezentos anos de escravidão conquistaram a ferro e fogo seus direitos escritos ou não, ainda vemos a chibata broxa do senhor branco retirando demarcação de terras indígenas e quilombolas, tornando aquele documento saudoso em mais um de tantos outros documentos assinados com a tinta ficcional do poder, uma tinta que não concretiza o viver dos homens, que não vai além da lorota que as elites contam para si mesmas para fingirem que dormem tranquilas.

Nesse treze de maio vimos Hoffmans e Roussefs, que representariam o passo adiante da abolição definitiva, mostrarem a desabolição da vida política, indo além de nossos piores pesadelos, indo além do que nosso inimigos anteriores nos causaram, indo além do que nosso medo de mais uma traição permitia sonhar.

osvaldo-cruz-32-thumb-1E nesse treze me lembro de Zumbi, me lembro de Prata Preta, me lembro de Oxóssi dizendo “Eu sou Oxóssi, comigo ninguém acaba!” e me sonho preto, e me espero preto, para que um dia a mancha de ser branco suma do corpo, da alma, em uma vitiligo ao contrário, uma vitiligo causada por um desejo de desenbranquecimento, para que a verdadeira abolição chegue pra todos, pra mim, pra ti, pra todo o Xirê.

A maioridade penal, o ECA, o medo e o guarda Belo

imagesO medo nem sempre é bom conselheiro, especialmente em matéria de legislação.

Para parte da esquerda especialmente, a oscilação do trato da questão criminal entre a condescendência e o medo/pânico, alinhado com o status de classe média de boa parte de seus membros, é um dado sintomático de que problemas em geral são medidos por ou análise distante e esquemática ou pior, pelo impressionismo assutado do medo do outro, especialmente de um povo que mal se conhece e se quer dirigir.

Em discussões entre amigos por vezes nosso sangue sobe, esquenta e temos menos docilidade que o trato comum político às vezes exige.

tumblr_m1z2acBpE91qmr448o1_r1_500Às vezes temos condescendência com o crime ou com os amigos que assustados pela maré de pânico insuflado pelo Datenismo ululante ou por tragédias pessoais e não enfrentamos a questão política séria que persiste em discurso que se pretendem distantes dos lugares comuns reacionários ou esquerdistas.

Para enfrentar a discussão não tem de se ter condescendência, mas observar os fatos, os dados, a lei, o avanço dela, o quadro anterior, a relação de crime na vida adulta e juvenil, o percentual de recuperação e ir além de um certo pavor muito incitado por informação deficiente ou distorcida pela mídia.

O Estatuto da criança e do adolescente é uma das leis mais avançadas do mundo, mas vira a Geni do Chico Buarque a cada vez que um menor comete um crime hediondo, mesmo sendo este menor menos de 1% do universo de menores infratores (Dados retirados daqui). E ignora-se também que do universo de menores infratores apenas 20% se tornam reincidentes, o que inclui reincidentes em crime como assassinato ou crimes hediondos, o que em comparação com o universo de 60% de reincidência da criminalidade adulta fica-se a impressão de que reduzir a maioridade penal é algum artifício do próprio crime ou de empreiteiras que acham que tá fraco o movimento da construção de novos presídios e quer ampliar a reincidência adulta para 70%.

images (1)Mudar o ECA para ampliar a punição para menores infratores, sendo que o ECA não é o problema, é colocar o ECA como culpado de ao menos parte do problema, é alvejar o ECA, é colocá-lo na linha de frente dos ataques, é assumir que o ECA falha, que o ECA é causa do problema da violência. “AH, mas eu não quis dizer isso”, pois é, pode não querer, mas está dizendo.

Se a questão toda é a não implementação do ECA, a ausência absurda da estrutura necessária para que o ECA funciona, ausência de acompanhamento social que não faça que um menor infrator que pelo ECA tem de retornar com familiares vá embora sem nenhum tipo de controle após uma infração é um problema do ECA? Não, é um problema do estado que inclusive o desobedece.

A existência de 1% de homicídios por menores com cerca de 20% deste com reincidência pode até diminuir em número de reincidência, mas dificilmente diminui mais que esses 1% e mesmo diminuindo cada caso será tratado com estardalhaço por uma mídia altamente conservadora e reacionária.

DADINHO (1)A lógica de que 1% é muito é até surreal. E mais, a partir do ECA se tem o controle de ao menos parte dos menores infratores e se consegue ter números espetaculares diante do quadro de ausência clara de política de enfrentamento do problema pelo viés social e não policial. Com todos os problema,s falta de verbas, de profissionais adequadamente treinados, instalações se tem até um sucesso muito superior ao do mundo da prisão de adultos com apenas 20% de reincidência.

A questão é que mudar o ECA é um viés de análise que se não está alinhado com os interesses escusos dos defensores da maioridade penal acaba mesmo que inadvertidamente a alimentá-los e em uma conjuntura como a atual acaba por ser o primeiro passo para oferecer o ECA em holocausto.

Mudar o ECA para atender o medo/pânico dos Cidade Alerta é transformar a lei em culpado pela negligência dos estados que estão muito mais preocupados com a manutenção do desenvolvimentismo com inclusão via consumo e da construção de novos aparatos para copas e olimpíadas que alimentem Eikes e empreiteiras do que com a cidadania, inclusão social, recuperação de menores infratores, ressocialização de criminosos e de enfrentamento da horda de desumanização que corre solta em várias fronteiras da vida social cotidiana.

A lógica da mudança do ECA para incluir maior penalização de menores infratores é prima dileta da redução da maioridade penal, apenas vestida do eufemismo culpado de quem por vezes não se entende como endossador do conservadorismo, mas já atravessou o rubicão.