Sobre não dar descanso a Temer, as diferenças, distinções e imobilidade eleitoreira

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Quando Dilma sofreu o impeachment na câmara parte da esquerda partidária e de movimentos sociais declarou que não daria um segundo de paz a Temer.

Pois é, mas deu.

Deu inclusive mais que um segundo em paz, deu dias, semanas, meses.

Manifestações até ocorrem, mas pingadas, poucas e pouco representativas.

Ações, como as que ocuparam o MinC, foram pouquíssimas e pararam há semanas, mesmo obtendo vitórias diante deste governo apalermado, ilegítimo e fraco.

E o governo ilegítimo prossegue com suas ameaças asneiras não só à classe trabalhadora, mas à democracia, ao bom senso, ao futuro da produção científica e à educação laica e de qualidade.

Mas a esquerda partidária prossegue sem tirar a paz de Temer, a não ser que entenda que tirar a paz seja xingar muito no Twitter.

Nesse meio tempo a esquerda partidária redescobriu o PMDB vilão de desenho animado, mesmo que o PT, que se aliou ao PMDB feliz em 2010, tivesse se construído denunciando o PMDB coo parte da direita coronelista brasileira desde seu nascimento nos anos 1980.

Todo santo dia parte dessa esquerda chora lágrimas de esguicho porque Cunha, Temer, etc são “ladrões” e “golpistas”, chega a ser meigo, doce e dramático, mas tem a função social do furúnculo na bunda como processo civilizador, com a devida vênia pela utilização terminológica.

Enquanto isso se não fosse índios, padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazendo o carnaval à revelia da política institucional poderíamos dizer que a esquerda morreu enforcada nas tripas do último burocrata.

Sim, não há esquerda nas ruas, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.

Tá, vá lá. Não sejamos injustos!
Profissionais estão em greve em vários estados, especialmente professores, e especialmente no Rio e RS, mas a vida da esquerda é mais que greve, por enorme importância que elas tenham.

E a vida política das greves é mais que elas mesmas e suas categorias.

Nem às greves o apoio coletivo da esquerda, o enorme peso necessário pra disputa hegemônica e contra hegemônica das consciências, a gente vê com a ênfase necessária.

Greve Geral? Sonha!

Vemos sim a esquerda tartamudear lamentos grandiloquentes sobre a maldade do mundo contemporâneo gritando o inócuo e babaquara grito “Primeiramente Fora Temer”.

Como se essa fraseologia amestrada fosse um abracadabra da libertação dos cães capetóides da revolução pra cima da direita, que ri, de lacrimejar na gravata, dessa bobagem.

A esquerda partidária definitivamente abraçou a teleologia da revolução enquanto evento escatológico e apocalíptico.

Sua religiosidade “racional”, seus mantras, signos, sinais, santos e demônios travestido de figuras públicas e burguesia, e segue na procissão candente dos ignaros rumo ao nada.

Tem avanço fascista que mata alunos da UFRJ, amplia crimes de ódio, ameaça professores, ganha DCEs, apoia bolsonaros, etc?

Lutaremos contra isso, mas vamos tentar canonizar nosso santo da vez elegendo-o prefeito primeiro?

E às diferenças e distinções entre nós da esquerda, como são tratadas? Com a velha e boa desqualificação dos que não são convertidos à fé dos mosteiros vermelhos de São Lênin, São Marx, São Trotski e Reverendo Stálin, na borrachada.

A nova é o racha do PSTU provocando grandiloquentes debates sobre a razão ou desrazão de gente adulto optar por tomar outro caminho organizativo.
Como se isso fosse sequer da conta coletiva ou elemento fundamental de qualquer mudança dramática na conjuntura ou tivesse efeito daninho à organização política coletiva.

Sim, a esquerda partidária ainda se ressente de gente adulta definindo que não quer mais fazer parte de grupo A e se deslocando pra fazer parte de grupo B ou vender sua arte na praia.

Como se o cara ao migrar sua militância pra anarquia ou sair do partido A pra fundar outro ou ir pro B, ou mudando seu nome pra Chupeta de Baleia e fazer performances acrobáticas na praça XV mudasse um cacete de elemento prático na conjuntura e tornasse a vida coletiva mais ou menos dura no enfrentamento político contra a direita.

Mas reparem que a cada racha ou a cada crítica soltam-se as balalaicas argumentativas dos xóvens do mosteiro vermelho falando da necessidade de “um partido da classe”.

Vejam bem, não falam da necessidade da classe trabalhadora se organizar ao máximo, mas dela ter “um partido”, reparem no numeral “um”, isso mesmo, apenas um, unzinho.

E as diferenças, as dissonâncias, a diversidade, as distinções? Fodam-se elas, só pode existir um.

Tá certo que parte boa da esquerda de hoje cresceu com Highlander no imaginário, mas desde os anos 1960 ao menos temos elementos teóricos pra discutir essa obsessão pela uniformidade na esquerda que dão um novo gás à nossa própria percepção do mundo e rediscutem a obsessão marxista-leninista pelo partido único, centralizadaço, supostamente democrático, não?

A diversidade, as distinções, as diferenças produzem mais diversidade, mais distinções e mais diferenças, e isso tá longe de ser negativo diante da óbvia complexidade da composição da realidade e das classes operárias, dos mundos e fundos que são feitos de gente que luta, se organiza, sobrevive, produz suas próprias pautas e lutas.

E o que isso tem a ver com dar descanso a Temer?

Tudo.

Até porque enquanto a esquerda partidária ignora o mundo externo a ela e o aumento dos crimes de ódio, da sanha bolsonarísta de se impor na porrada sobre mulheres, negros, LGBT, a coletividade transformadora da esquerda não partidária tá por ai enfrentando essa direita sem precisar gritar “Primeiramente Fora Temer”.

E segue a esquerda ignorando essas lutas, tratando-as como “problematização que desvia o foco da luta de classes”, atacando mulheres, atacando indígenas, atacando LGBT que gritam, em grandiloquente razão, sua fome de mudanças e conseguem cercear a direita, emparedar a direita, tornar a vida da direita um inferno enquanto a esquerda partidária agenda uma nova apresentação do Papai Noel de Montevidéu numa tour inútil de louvação tosca a figuras públicas burocratizadas, mas pop.

Ou isso ou lendo um Stalinista pop como Zizek falar bobagens reaças, mas de esquerda, enquanto Temer agenda matar a CLT a pauladas.

Vão esperar perder direitos pra agir? Não é a lição que secundaristas, índios, LGBT e mulheres estão dando.

Mas uma esquerda que ainda acha que só há um caminho pra transformação, e portanto um tipo de conhecimento supostamente racional e organizado pra compreender a realidade, consegue aprender algo que fuja do adestramento?

Difícil.

Da diversidade da subversão e do ethos transformador

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Primeiramente #Molotov .

Os caminhos ideológicos da esquerda traduzem as contradições próprias do campo contra hegemônico a partir de sua miríade de campos dentro e fora do marxismo tradicional.

Quando coloco campo contra hegemônico é proposital pra fugir da terminologia “Progressista” onde são encaixados uma outra miríade de grupos que nem sempre são participantes de qualquer noção ética de transformação social ou ruptura ao status quo, entre eles liberais democratas, capitalistas desenvolvimentista de linha keynesiana, etc.

Por que os caminhos da esquerda hoje, tida como dispersa e fragmentada, traduzem as contradições inerentes a este campo contra hegemônico? Porque a esquerda jamais foi esse monólito vivo em torno do ideário marxista.

E isso se tornou mais eloquente pós-crise do estruturalismo decorrente dos efeitos da segunda guerra mundial e da racionalização do genocídio a partir do nazifascismo provocando uma crise na própria narrativa moderna da razão como libertadora e mãe do progresso.

Inclusive esse é mais um motivo pra crítica do uso do termo “progressista” para definir quem atua no campo contra-hegemônico, mais conhecido como esquerda. Porque a lógica moderna do progresso traduz uma percepção de avanço das forças produtivas que despenca na ideia do domínio antropocêntrico da Terra com desprezo absoluto ao meio ambiente, e também a um etnocentrismo que põe na frente a concepção moderna do progresso industrial e científico branco ocidental como medida de todas as coisas e culturas.

Dessa crise “da razão” emergiram muitas formas novas de transformação contra-hegemônica, mas também ressurgiram formas antigas e que estavam em campo desde muito tempo antes, como a própria ideia de anarquia que por muitos anos foi submersa pelo marxismo-leninismo, nem sempre apenas com a hegemonia ideológica e cultural, mas com violência (vide 1936 na Espanha).

Além do ressurgimento de campos ideológicos antigos como a anarquia e o autonomismo, surgem novas formas de debate contra-hegemônico como as que nascem a partir do feminismo e da luta LGBT, como a teoria Queer; A própria ideia de organização política dos povos originários, com seus paradigmas teóricos próprios que compreendem o mundo, a sociedade e as formas de transformação para além do que as teorias ocidentais propõe, mesmo que dialoguem com elas em algum momento; As construções ideológicas das populações africanas e do Oriente médio e Ásia a partir do caudal cultural e teórico produzido na descolonização, com ações que incluem o pan-africanismo e o marxismo, mas também releituras de ambos e transformações que traduzem valores próprios como a filosofia Ubuntu.

Para além disso as teorias produzidas na História, Filosofia e nas Ciências sociais apontam para novas saídas teóricas passíveis de serem utilizadas, como de fato o foram, por movimentos.

Pensadores como Ginzburg, Foucault, Thompsom, etc, fogem dos paradigmas centrais ao marxismo-leninismo e apontam para novas interpretações possíveis da vida humana e das organizações sociais que não eram contempladas quando Marx produziu suas teorias no século XIX ou quando Lênin se organizou misturando a teoria marxista a uma percepção fordista da política. Ou se eram contempladas o eram de forma absolutamente embrionária.

Se já haviam esses movimentos nos anos 1920 ou 1930, com críticos como Walter Benjamin tanto trabalhando com a crítica à construção marxista-leninista como mecânica quanto apontando o progresso, e a própria noção de História como irmã do progresso, como um processo de inevitável libertação da humanidade a partir do desenvolvimento técnico, como se a sociedade e a tecnologia fatalmente se abraçassem um dia numa era de ouro do humano, eles triplicaram em participação, peso e vivência no pós-segunda guerra e produziram tantas transformações quanto possível na própria ética da transformação no campo contra-hegemônico.

E desde os anos 1960 em especial esses movimentos e caminhos se tornaram cada vez mais diversificados e mais contundentes na ampla raiz de uma crítica complexa, completa e permanente de todos por todos e da própria ideia de transformação social.

E o que isso nos mostra? Nos mostra muitas possibilidades de análise e entre elas está desde a própria percepção das transformações como parte fundamental para o avanço das ideologias de transformação, com resultados práticos, até a própria reação de parte da esquerda outrora absolutamente hegemônica a esta diversidade e à própria crise de estabelecimento de sua ideia de unidade como hegemônica entre o diversificado plano de consciência dos movimentos de transformação.

Além disso, esse confronto entre a miríade de movimentos de transformações e os outrora campos hegemônicos do ideário de transformação põe também em confronto a própria ética da transformação, ou seja, o ethos que permite a compreensão da moral deles (Dos opressores) e da nossa (quem busca as transformações).

Não é incomum que nos embates e nas lutas pela representação do ideário da transformação o amplo espectro da ética inerente aos mais diversos movimentos seja mandado pro espaço em nome da punição daquele que disputa com o outro o papel de representante da transformação social e política (Seja ela a revolução, a anarquia, a igualdade de gêneros ou o fim do racismo ou tudo isso junto). Não é incomum as acusações mútuas entre os campos de serem traidores de uma causa em especial ou de uma bandeira ou de um campo de significados que simbolizam a revolução. E não é incomum todos estarem certos.

A diversidade da subversão por vezes é tomada como panaceia ou como veneno, quando não é nem um nem outro e sequer deveria também significar diversidade do ethos transformador.

A diversidade da subversão é um fenômeno histórico que traduz uma nova percepção do real como multifacetado e intraduzível de forma única pelas mais diversas ciências e teorias (incluídas ai as ditas exatas), algo que se não é consenso é cada vez mais perceptível nos debates ocorridos no interior das ciências humanas, e não só.

A diversidade no ethos transformador é que é um problema e dos grandes.

Porque a diversidade da subversão é filha dileta da expansão das formas de luta e dos campos de embate contra a opressão, que produzem amplos espectros de vitórias e de exposição das forças conservadores e do Estado a uma miríade de táticas e demandas que não os permitem muitas saídas simplificadoras.

Prendem anarquistas? Autonomistas atuam. Prendem comunistas? Grupos feministas estão nas ruas. Universitários reprimidos? Secundaristas ocupam escolas.

Entre todos esses existem comunistas ortodoxos e não ortodoxos, autonomistas tradicionais e novos, black blocks, feministas interseccionais e radfem, movimento negro unificado ou que inclui brancos, movimento indígena com raízes partidárias e autonomistas, entre todos existem foucaultianos, confederalistas libertários, anarquistas, autonomistas, malucos, etc.

E todos participam da enorme tarefa de transformação do mundo com o estabelecimento de uma polifonia onde vários mundos acabam se tocando e dialogando, na marra.

Isso é o estado da arte da diversidade teórica e da liberdade de ação política conquistada pela contestação, dentro e fora da academia, e que permite de tudo um pouco nas ruas, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.

Essa diversidade teórica e liberdade de ação política nasce da própria crítica às amarras teóricas e políticas produzidas no campo contra-hegemônico pela ascensão do marxismo-leninismo como resposta única a todas as questões produzidas no espectro contra-hegemônico que contemplassem as transformações necessárias nas sociedades contra toda forma de opressão.

Essas amarras nasceram e cresceram desde a ascensão de Lênin ao poder na URSS com silenciamento de todas as contradições internas e externas aos bolcheviques, muitas vezes com uso do exército vermelho de Trotski, e viraram um Leviatã sob Stálin e com o crescimento do peso geopolítico da URSS e seu controle sobre os partidos comunistas mundo afora.

Não à toa dois dos momentos de explosão da miríade de movimentos e concepções de luta nascem na e da explosão teórica pós-1960, período onde também ocorre o primeiro rompimento coletivo com o Stalinismo partindo da própria URSS e tendo reflexos na saída da China do estado de parte do Komintern, e após a queda da URSS nos anos 1990.

O resultado das reações à diversidade teórica e liberdade de ação política pós-1960 vem sendo, primeiro pelos PCs e agora pelos partidos da esquerda tradicional (em geral trotkistas) mundo afora, bem similares: Descrédito a tudo o que foge da ideia de “unidade”, que no fundo é busca de uniformidade; desqualificação das teorias contra hegemônicas não partidárias como “pós-modernas” , mesmo que a maioria ainda compartilhe de boa parte dos paradigmas da modernidade e o pior dos casos, o desvio ético que contempla o abandono do ethos da transformação em nome da garantia de espaços de poder, em geral burocráticos, que permitam o confronto com vantagens operacionais contra as mobilizações diversificadas, ou mais gerais e autônomas. Essas vantagens nos confrontos incluem uso do aparato policial de governos, processos judiciais e sim, tem muito a ver com a concepção fordista e até militarizada (Trotski defendia inclusive a ideia de militarização de sindicatos na revolução russa) de movimentos sociais e organizações políticas.

E ai é que está parte do problema do rompimento com o ethos transformador.

Porque o ethos transformador inclui na práxis cotidiana a ideias de reprodução ética de valores aos quais se deseja espalhar para toda a sociedade, ou seja, não adianta defender igualdade de direitos entre gêneros e etnia e incorrer em racismo ou machismo.

Não adianta ser contra transfobia e ser transfóbico, homofóbico, etc. Não adianta querer a liberdade da sociedade via revolução e encarcerar quem diverge de você, ou desejar que alguém morra de forma brutal por ser seu adversário, mesmo ele sendo um torturador ou defensor de torturadores.

A diversidade de meios de luta contra hegemônica é positiva, a flexibilização ética do ethos transformador não.

Há uma bela diferença entre pacifismo e contraposição à barbárie com barbárie.

Precisamos manter a lógica de ampliar a diversidade de percepções, interações, construções contra hegemônicas, a diversidade não nos enfraquece, fortalece e “pira” o poder.

Se nesse meio tempo essa diversidade também enfraquece as forças políticas organizadas em torno das burocracias, paciência e problemas deles.

Enfrentemos os resultados disso, pensemos e construamos a resistências à opressão com ou sem essas forças, com ou sem parlamentares, mas não esqueçamos da necessária manutenção do ethos transformador.

Parte da diferença entre nós e Bolsonaro é saber a nossa ética. Quem esqueceu ainda dá tempo de lembrar.

A própria ideia da catalogação ideológica em caixinhas determinantes e limitadoras é parte de um processo redutor do outro ao limite ideológico imposto. Por isso limites como “anarquistas não podem votar” ou “marxistas tem de ser centralistas democráticos” são parte da redução e da simplificação, que contém uma boa dose de autoritarismo.

O limite do pertencimento ao campo contra-hegemônico deveria ser menos doutrinário e mais ético, menos autoritário e mais libertário, menos redutor e mais amplificador e pode ser resumido na luta contra a opressão e contra o capital como porto seguro de todas as opressões a partir das opressões de classe.

Precisamos ir além do sistema e pensar pra fora dele. Ir além do voto, ir além das caixas, mas sem desgrudar de nossa ética fundamental: Não podemos ser como quem combatemos.

 

Do Impeachment ao stalinismo: A ampliação do silenciamento de mulheres, LGBT, Negros e índios

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O Brasil passa por milhares de problemas hoje.

Pós-impeachment de Dilma ele acrescentou a uma crise econômica gravíssima dentro de um contexto mundial, um nível de ruptura institucional complicadíssimo pra quem vive a luta institucional.

Acrescente a ampla descrença no sistema político brasileiro que vem em um crescendo ao menos desde 2013 um avanço de conservadores, amplifique com desconfiança tácita em todos os partidos, um judiciário ativista com flexibilidade ética, um governo interino ilegítimo e uma esquerda imobilizada, voilá, temos um caldeirão pronto pra requentar o caos.

Pra piorar o governo ilegítimo acha que o impeachment os legitima pra uma guinada de 180º na linha política já tímida do governo anterior em relação a direitos e a esquerda partidária pira na batatinha endossando o que o Governo Dilma e o PT mais querem: A irreflexão sobre os anos de concessões que pavimentaram o golpe transformada em apoio acrítico, recheado de pânico, ao Partido dos Trabalhadores como se um golpe fosse uma espécie de morte, que a tudo santifica.

É de um lado Alexandre de Moraes afirmando que usará a lei antiterrorismo pra meter a porrada em manifestante e quem criou a lei antiterrorismo e foi cúmplice de violência contra manifestante na copa e sócio do agronegócio no ataque a indígenas dizendo que são lados opostos, porque Dilma foi apenas péssima em DH, enquanto Temer é o horror.

Só que tudo fica mais pantanoso e até leviano quando nos pegamos lendo atitudes que envergonharia a esquerda se essa não tivesse perdido a noção de ética e do que é nossa moral em relação à da burguesia faz tempo, nessa marcha de naturalização do Stalinismo como se fosse pragmatismo e da secundarização de lutas como se fosse “foco na Luta de Classes”.

Bem, o PT e parte da esquerda partidária não satisfeitos em mimetizar a mídia corporativa para atacar Temer, como se precisasse, também está utilizando o momento crítico pra fazer uma caça às bruxas a toda a esquerda que atuava nos movimentos ampliando as pautas e exigindo mais direitos, especialmente os movimentos calo pro PT e governo como LGBT, Mulheres, Negros, Índios, Trans, etc.

Além do clássico “Não é hora de criticar o PT” temos agora o “Essa galera que problematizava turbante, essas ‘‘feminazis’’ são também participantes do golpe!” e variações da ladainha numa ressurreição do movimento de criminalização de ativistas produzido em 2013 que chegou ao ponto dos MAV do PT espalharem fotos fake de anarquistas empunhando bandeira nazista, foto manipulada por Photoshop que apagou o A anarquista e pôs a suástica.

Pra completar ninguém da esquerda partidária faz a mínima autocrítica sobre sua participação na criminalização de anarquistas e autonomistas feitas de 2013 pra cá, e não só, atua pra aparelhar as ocupações de escolas e transformar todo movimento de resistência a Temer em parte da “Frente Povo sem Medo”.

Se juntarmos o avanço de silenciadores secundarizadores de luta tentando silenciar mulheres e negros com o aparelhamento da indignação não é difícil entender o que temos pela frente: além da luta antifascista, que não recebe um pingo de ajuda dos partidos da ordem como PT, PSOL e PSTU, ainda temos um avanço de uma concepção stalinista de esquerda que é um avanço autoritário terrível para a esquerda.

E sim, esse momento contém mais perigos do que podemos imaginar. O avanço do Stalinismo dentro do campo das esquerdas naturaliza o autoritarismo como solução.

Some a contaminação autoritária da esquerda à ampliação do caudal autoritário na sociedade como um todo e o resultado não é exatamente cheiroso.

Se a esquerda é autoritária e a sociedade também é não há Chapolin Colorado que nos salve.

Em tempos onde escolas ocupadas sofrem ataques violentos de estudantes financiados pela direita para agredir quem as ocupa é perigosíssimo transformar quem deveria resistir a isso em espelho.

A complexidade dos problemas e da conjuntura exige mais do que uma reação dura aos ataques conservadores, ela exige uma reação qualitativa ao avanço do conservadorismo.

Não precisamos e nem podemos responder autoritarismo com flores, mas também não precisamos ou podemos responder ao conservadorismo com autoritarismo centralizador, silenciador e até misógino e racista.

É nessa hora que precisamos entender a diferença entre nós e eles. E ela não é só de um suposto lado que ocupamos e arbitrariamente definimos como se fossem uma manifestação binária maniqueísta.

A diferença entre nós e eles é também de valores, de busca de abolição de hierarquias, classes, fronteiras, opressões.

E não, isso não é sonhador, isso é identitário, estruturante.

Não podemos manipular manchetes pra desqualificar Temer, não precisamos disso, temos a defesa dos DH e a luta contra sua violação como tarefa, e isso já dá um enorme caldo pra batermos no governo ilegítimo.

Não, não precisamos sacanear movimentos autônomos ou a luta contra o silenciamento, debatedora do lugar de fala, e contra a apropriação cultural racista pra supostamente focar na luta de classes sufocando “desvios”, porque a luta anti racista e contra privilégios,misoginia, machismo e homofobia SÃO A LUTA DE CLASSES.

E também não precisamos fantasiar o governo Dilma pra chamar Temer de um horror.

Essa é inclusive a hora de E-XI-GIR do PT uma plataforma de real guinada à esquerda, uma reversão programática do que vinha fazendo, concretizando promessas jamais cumpridas, isso pra começar, e não para agirmos como esquerda domesticada pronta a servir o tutor do Campo da esquerda na hora em que ele precisa, mesmo sem merecer uma linha de confiança.

Precisamos inclusive entender que as fragilidades do governo Temer tem tudo pra miná-lo mais cedo do que a imprensa encantada com o governo reaça deseja e sequer percebe. E que essas fragilidades fatalmente porão de novo o PT no governo, ou ao fim de 180 dias ou em 2018,mas que recebendo endosso ao que foi Dilma baseado numa espécie de amnésia causada pelo pânico teremos a continuidade de governos terríveis pra DH, meio ambiente, indígenas, favelados, etc..

Não basta, portanto, resistir a Temer, derrubá-lo, precisamos também derrubar no PT o que levou Temer a ser presidente ilegítimo.

E não faremos isso com silenciamento e adesão acrítica, precisamos de mais e um bom começo é saber que nossa moral e a deles não é a mesma.

O que fazer no dia depois de amanhã?

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A esquerda vem sendo reativa há tempos, isolada em seus castelos, transformada em assessoria de gabinete de governos, movimentos organizados inclusive, desde muito tempo antes do PT assumir o poder em 2003.

Funcionou por muito tempo a relçação entre movimentos, partidos, governos e mandatos. Construiu caminhos através da burocracia, programas de governo e projetos de lei.

Só que enquanto se acostumava com a relação íntima com palácios a esquerda foi paulatinamente perdendoas ruas, e quando percebeu isso, especialmente em 2013, outras forças da própria esquerda e da direita começaram a ocupá-las. A saída pra governos e partidos vinculados à esquerda foi criminalizar quem ocupava as ruas, colocando todos no balaio do fascismo.

Isso esvaziou as ruas por um tempo até que a direita se reorganizou, amparada por governos explicitamente de direita, e voltou pras ruas, amparada por policiais que construiram publicamente a diferença entre “manifestante” e “militante”, o segundo, “comunista”, deveria ser reprimido, os demais não.

Atônita a esquerda partidária permaneceu longe das ruas. Aprisionada e processada, a esquerda não partidária também, embora atuasse fortemente nas ocupações de escola, manifestações por passe livre, etc, atuando em geral por vias menos ortodoxas, mais próximas às periferias e vinculadas a bandeiras mais práticas e cotidianas.

E cresceram os movimentos de direita, a classe média conservadora tomou gosto pelas manifestações sem política, sem repressão policial, com muita festa, anticomunismo, ódio racial, ódio a LGBTTS, feminismo e em especial ao comunismo. O fascismo começava a pôr a cabeça de fora.

A esquerda, aidna atônita, mas percebendo o perigo de impeachment saiu às ruas por um breve tempo, depois voltou a aguardar com a fé dos incansáveis, uma solução salvadora vinda das articulações palacianas de suas figuras públicas.

E não teve solução, não teve articulação que desse jeito, Dilma caiu, Temer assumiu com um ministério mais conservador que o de Collor.

Enquanto tudo isso acontecia várias manifestações antifascistas e ocupações de escolas ocorriam, com a esquerda partidária as ignorando ou tentando se apropriar delas pela via de UBES e UNE sem muito mais do que dezenas de estudantes ocupando o Parlamento, enqquanto nas escolas alunos auto-organizados tocavam o baile do ativismo que transforma, conseguindo em São Paulo uma CPI da Merenda e no Rio o fim do SAERJ (Prova de avaliação de “desempenho”). As ocupações horizontais permanecem em vários lugares, como em Goiás, Porto Alegre, Fortaleza.

E ai, e o resto da esquerda, o que faz no dia depois de amanhã do Impeachment de Dilma?

Bem, pouca coisa prática além de choramingar sobre o recuo conservador que é o Governo Temer e listar publicações internacionais criticando o impeachment de Dilma.]

Zero de análise, de auto-crítica, de propostas, zero de percepção de algo além do óbvio sobre o processo.

Parece que Temer, vice de Dilma, desceu de um disco voador vindo de Marte.

A esquerda petista lembrou outro dia que os índios existem e colocou que com Temer eles vão acabar. Bem, pode ser, inclusive Temer precisa apenas olhar como Dilma produziu parte do processo de extermínio indígena e repetir, nem precisa reinventar a roda.

Esse é parte do problema: Cadê ao menos o “Foi mal!” do PT sobre os recuos que empoderaram essa direita que o golpeou pra gente começar a conversar coletivamente sobre resistência? Não vai rolar? Não, não vai rolar, mas então, que tal ao menos propor caminhos de resistência além do Avaaz?

Não sei se vocês notaram, mas dizer o óbvio, que o ministério Temer é um horror, não o transforma no Coelhinho da Páscoa.

A ausência de mulheres e negros, a transferência da titulação de Quilombos pro MEC não é apenas um informe, é uma prática entrando em ação. Alexandre de Moraes na Justiça idem, significa que o pau vai comer.

E não, não adianta vir com aquele papo brabo de “Viram? Sem o PT é pior!”, porque senão a gente lçembra a responsabilidade do próprio PT com alianças à direita e empoderamento do mesmo PMDB dentro dos governos Dilma e Lula. Sim, sem o PT é pior, mas com o PT não estava bom e metade do ministério Temer também foi ministério Lula ou Dilma, de Henrique Meirelles a Henrique Eduardo Alves, Jucá, Kassab, etc. Melhor mudar de assunto, não?

Então, estão vendo as escolas? Estão vendo as manifestações antifas? Que tal baixarem a bola e a sbandeiras e colarem enquanto militantes pra apoiar, dar força sem tentar apropriar, aparelhar, transformar em palco eleitoreiro? Que tal se transformarem de novo naquela galera que não queimava na fogueira valores e bandeiras históricas pra construir o cadafalso que produziu o impeachment de Dilma?

E podemos avançar, há enormes mudanças no quadro teóprico prático da militância anarquista e socialista desde 1917, sabe? Tem as experiências do Curdistão libertário sírio, por exemplo, que dão caldo. E acho que se o Ocalan velho de guerra conseguiu produzir uma teoria libertária vindo de uma tradição leninista a gente consegue também, não?

Que tal a gente começar a discutir comitês de resistência? Não, dificilmente vai ter a adesãod e autonomistas e anarquistas, mas tem boa parte da esquerda que ainda ama votar e adoraria uma experiência organizada de forma horizontal, mesmo com o exemplo dado recentemente sobre o valor que a eltie política dá ao voto. Sabe o PODEMOS e o SYRIZA? Pois não nasceram cooptados pelo sistema e tem mais horizontalidade que a maior parte dos partidos brasileiros, mas muito mais que PSOL e PT.

Sei que RAIZ e REDE não são similares a PSOL e PT, embora o RAIZ esteja hoje em filiação solidárioa ao PSOL, mas são experiências de organização político partidária bastante mais horizontais e o quadro de recuo conservador não tá deixando barato quem fica pensando apenas no próprio umbigo.

Para além disso há contingentes autonomistas e anarquistas produzindo coisas novas, com resistência a tarifaços, aumento de energia, passagem, com luta por ocupação de imóveis, tem todo um trabalho educacional sendo feito. Tudo isso pode ser exemplo de funcionamento pra quem quiser transformar de novo o quadro político e construir saídas ao recuo conservador.

Ainda mais se analisarmos o quanto esse recuo que tenta atingir cotas, LGBT, mulheres, etc e também não aponta nenhuma saída econômica que vá funcionar em um quadro de crise econômica internacional, que tende a ampliar a recessão, além de pôr fogo no cabaré que é hoje o teatro político brasileiro.

Já tem ocupação do IPHAN, auditores do CGU bastante invocados, pra disso sair greve é dez reais, mesmo o Alexandre de Moraes achando que o Brasil é São Paulo e vai geral protegê-lo de mídia e de exposição.

E ai, que tal parar o mimimi e produzirmos o avanço na marra?

The Bookchin is on the table

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Pensar ecologicamente é descentralizar, é construir holisticamente e descentralizadamente um processo coletivo de interação. É gerir-se e gerir a política para além da dialética e do diálogo, buscando a polifonia onde não que tente e nem se construa a síntese, mas se produza um processo que vá além da síntese, do amálgama do processo coletivo e horizontal em um processo amputado, sintético que que se conclui com a tentativa de unidade opinativa e não de construção coletiva concreta onde a isegoria se transforma em liberdade.

Ecologia demanda pensar de forma descentralizada e decentralizante, anti estatal, anti capitalista, indo além da proposta centralizadora da maior parte dos partidos e do próprio ethos partidário, de manter o estado e reformar o método de gerenciamento dele a partir de parâmetros socialmente avançados.

É preciso desconstruir a ideia de mudança pela gestão do estado sem mudar a estrutura, buscando dentro da institucionalidade centralizadora e hierarquizante construir um mundo idealmente descentralizado e comunal.

Se o ecossocialismo despertou em mim esta compreensão, a partir de Tanuro e Lowy, ao ler Bookchin entendi que ser ecológico é ser anticapitalista e antiestatista e que o centro das transformações está na tomada de poder pelas comunidades, pelas aldeias, pelos bairros, pelas mulheres, pelos velhos, pelos índios, pelos quilombolas, pelas crianças.

Se a anarquia despertou de novo em mim o antiestatismo que nunca foi embora e a ideia radical de que sem destruir a hierarquia não se tem anarquia, em Bookchin entendi que além de anarquizar é preciso ecologizar, é preciso ir além de ser horizontal sendo ecológico, participando ativamente da relação integral entre espécies, entre reinos, entre as diversas formas de existência presentes no mundo dito natural.

A ideia de Bookchin é revolucionária por si só quando ele discute a cidade e a ecologia a partir da necessária defesa da diversidade, do papel revolucionário dos bairros e das cidades na luta contra o estado e pela relação de vizinhança, de solidariedade comunal, que rejeita a hierarquia do estado impulsionando a opressão. A partir deste eixo ele constrói a teoria onde bebe em fontes amplas, desde a democracia grega até se referenciar nas associações comunais da Nova Inglaterra, presentes até hoje de alguma forma como eixo de tensionamento com o estado estadunidense em suas diversas esferas, especialmente nos condados e municípios, mas indo até mais longe que isso.

A ecologização da política se reflete para além do discurso, e mais, ataca o eixo de compreensão do estado, coletivos, comunidades partindo da lógica anti hierárquica. Este efeito influenciou os Zapatistas no México, os revolucionários curdos de Rojava e diversos coletivos anarquistas ou não mundo afora. E influencia, pois radicaliza na defesa da horizontalidade e da ideia revolucionária que sem diversidade e ecologia o pensamento anti hierarquia morre por falência múltipla de órgãos.

E por que morre? Porque é fundamental para a sobrevivência de um bioma que ali exista diversidade, ausência de hierarquia, relação de isonomia entre os entes que ali vivem, acesso a alimento, água, presença de múltiplas e igualitárias regras de existência paras que da árvore ao esquilo todos vivam para que nutram-se em equilíbrio.

A tosca analogia entre predador e predado esquece que o predador morre, apodrece, vira adubo que alimenta as árvores, que fornecem vegetais que alimentam os animais menores que alimentam os predadores. Com o perdão da analogia também tosca, mas a ecologia deixa claro que o mais forte não sobrevive sem uma relação de simbiose em algum nível com o mais fraco e que esta relação não é necessariamente opressora e nem precisa ser.

Não há como permanecer uma separação entre produção, economia, consumo, processos decisórios, judiciário, segurança, alimentação e saúde sem a compreensão dos efeitos de interligação entre cada elemento destes, de nossas vidas e do mundo dito natural.

Não há mais espaço, na verdade nunca houve, para humoristas ironizarem em rede nacional em programa de entrevista a luta contra a caça às baleias perguntando para que elas servem (Chico Anysio no programa “Jô onze e meia”).

Não há mais espaços para a defesa de crescimento econômico, de reformas urbanas, políticas, sociais sem a discussão sobre recursos naturais, responsabilidade no consumo, papel da indústria, da cultura de fábrica, direitos comunitários, laços de solidariedade comunal, conhecimentos tradicionais, clima, hidrologia,etc.

Não se pode defender um crescimento econômico a todo custo projetando-se no macro ignorando-se o efeito disso no cotidiano populacional. Mais, é criminoso pensar o macro ignorando-se o somatório de efeitos de processos decisórios nas múltiplas realidades do micro e seus efeitos.

Em suma, não é possível que se mantenha a cegueira optativa de entender que a ampliação de hidrelétricas na Amazônia tem efeitos daninhos lá e esses efeitos ecoam na crise hídrica do sudeste.

Não é possível ignorar que a ampliação do consumo de energia que segundo os “planejadores” da economia obrigam a investimento na ampliação de hidrelétricas e térmicas ocasiona ampliação do aquecimento global, mudanças ecológicas que interferem no regime de chuvas, na sobrevivência de espécias e que isso tem efeito amplo que vai da crise hídrica à ampliação de presença de contaminação por doenças antes desconhecidas a partir de insetos, por exemplo.

A centralização e hierarquização da política, dos processos decisórios, da própria lógica econômica, do estado, dos governos, da ideia de PIB, tudo isso é em si anti ecológico e por consequência criminoso e anti vida.

Enquanto a Economia busca a normatização,regulação e administração (Oikos = Casa; nomos = Costume ou lei) do lugar onde se vive, a Ecologia busca entender o funcionamento do lugar onde se vive (Oikos = Casa; logos = estudo ou lei). E quando a normatização ocorre antes da compreensão a coisa toda degringola.

Com o devido perdão da simplificação filosófica a partir da semântica, a ideia não distancia-se de uma análise mais profunda da relação entre percepção hierarquizante, centralizadora e autoritária do estado e a ausência nas tradições políticas estatistas de qualquer compreensão ecológica e resistência à ideia de horizontalidade, de gestão comunitária, citadina, de bairro, de rua a rua, de recursos, direitos, justiça, segurança, saúde.

Essa ausência de percepção, essa ausência de entendimento do coletivo, do comunitário, da cidade, bairros, vilas e ruas como eixo da vida cotidiana, das organizações sociais, dos grupos sociais, como fundamentos e não como elementos secundarizantes e secundarizados, provocam a percepção de que é lógica a instalação de grandes siderúrgicas que destroem a vida de pescadores artesanais e o bioma de Santa Cruz, como no caso da TKCSA ou implantam termelétricas como a de Pecém no Ceará, que se alimenta de enorme quantidade de água em uma localidade com enorme carência de recursos hídricos ou ainda pior no caso de Belo Monte, onde além de destroçar a vida de comunidades indígenas e populações tradicionais ainda secam uma grande área do rio Xingu atingindo desde aldeias indígenas até o óbvio, a vida animal e vegetal ali presente, sem considerar em nenhum momento o que isso vem a causar nos demais biomas, nas demais relações ecológicas que respondem pela sobrevivência do planeta e na nossa própria sobrevivência.

Esse descolamento não é sintoma, é a causa do processo de crise ecológica que se tornam visíveis com a crise hídrica e climática, mas cujos efeitos são muito mais amplos, talvez sequer tenhamos a compreensão total destes efeitos.

Até hoje não se tem compreensão completa dos efeitos do vazamento de petróleo das plataformas da British Petroleum no golfo do México. Os efeitos das mudanças climáticas, causadas pela ação humana em especial pela queima de petróleo e outros combustíveis fósseis, possuem efeitos claros e em andamento (Como a crise hídrica mundial, e mais especificamente no sudeste brasileiro), já denunciados e anunciados, porém há uma relação de reação em cadeia para cada efeito deste, a partir do somatório de danos ambientais localizados, que não se pode nem matematicamente medir, dada a grandiosidade.

Essa grandiosidade ocorre porque se pensa o macro ignorando os efeitos de cada ação no âmbito micro e como isso se reflete a partir do somatório de efeitos e das reações em cadeia produzidas. Pensa-se no macro sem na verdade se pensar no macro, ou entende-se o macro sem entendê-lo como um somatório de micros.

A chuva que falta e causa a crise hídrica também seca plantas que deixam de alimentar animais que deixam de ser alimentos de outros animais maiores. E o problema ai não é o aumento de preço no mercado, é a possível extinção de espécies, cujos efeitos não são facilmente mensuráveis e tem tudo pra produzir mudanças no meio ambiente que causam outros tantos danos e mais reação em cadeia.

Em resumo a partir do desprezo pelos processos micro históricos, no interior dos grupos sociais, dos biomas localizados, das micro relações no meio ambiente, a partir da estruturação de uma ideia de relações sociais, econômicas,etc que ignoram a vila, a planta, o bicho e só pensem no nacional, no estado, na transnacional, no continental e no mundial, mas do jeito errado, o que se pavimenta é a destruição estrutural e totalizante de tudo isso.

Por isso the Bookchin is on the table, porque é preciso descentralizar, ecologizar, organizar a transmutação de baixo pra cima, destroçando a generalização, a hierarquização, a ausência de diversidade, o autoritarismo da sociedade que naturaliza o estado e do estado propriamente dito.

É preciso ser mais vila e menos Governo, mais planta e menos plantação, mais bicho e menos manada.

The Bookchin is on the table, basta ler, basta agir, basta ser ecológico e horizontal, porque é lógico, porque é eco.

É pau, é pedra, é o fim do caminho

CartoonAlckiminchuchu

A vida no sudeste do Brasil sempre foi um processo festivo. Ao menos pra uma elite e classe média que pediam crescimento e avanço por sobre as selvas da ignorância e da mediocridade nacional, envergonhados de não serem franco-canadenses ou anglo-saxões e conviverem de forma forçada com bugres do norte-nordeste enquanto franqueavam a natureza a visitação gringa.

Para essa elite a vida sempre foi um misto de reclamar do atraso brasileiro, da incapacidade de fazer renovações legais e comportamentais diante do atraso de Pindorama, e um louvar ao avanço por sobre as matas da ignorância e de um atraso tipicamente brasileiro chamado natureza e ausência de lojas Hermés na orla.

Essa elite infectou uma classe média que pagava de progressista e avançada e que pedia revolução no país desde que não atrapalhasse o choppinho da sexta.

Essa classe média acadêmica, intelectual, vivente e amante do povo, registradora da vida do povo, escrevente do cotidiano popular e alegre defensora da ideologia “de esquerda”, também guardava no fundo um desejo atávico que derrubasse as florestas todas e se promovesse o “crescimento econômico” que “tirava quarenta milhões da pobreza” enquanto criticava de forma tímida que esses milhões perdessem as casas, ou fossem índios e quilombolas atacados e removidos, mortos, pra não perder o verniz de esquerda e mantivesse a capa de “voto crítico” no PT em toda eleição.

Se essa classe média gritava contra o governo enquanto se votava nele, afinal não se pode perder o emprego na universidade, no fundo ela também só gritava contra o governo até a página dois, dado que o que importa é que o governo faça mais universidades que empregue mais os filhos desta classe média, todos com doutorado, ou recém chegados nela a partir dos títulos acadêmicos.

Parte da oposição de esquerda também flanava sua indignação e construção da revolução sem ir a Irajá numa boa até que, pasmem, surgiram outros atores menos afim de pagar de pateta da indignação revolucionária pontual.

Essa galera chegou chegando e pondo em prática o que fazia quando a PM matava alguém na favela onde morava: pondo fogo em ônibus e fazendo manifestação deselegante e deseducada, que assusta os filhos da classe média que se reuniam na universidade pra desfilar sua juventude dourada e protestante, domesticada, na cara de um estado pronto pra dar porrada nela.

E ai o estado chegou chegando como o estado sempre faz. E prendeu sem provas, e criminalizou, e meteu a porrada com tiro porrada e bomba.

E ai a classe média deu pra trás e chamou a massa ignara que a ignora de boba, feia e chata.

Mas o problema nem tinha começado. Além do mundo por a esquerda na roda do embate cotidiano entre polícia e rebeldes, entre polícia e pobres, entre a PM e os pretos, entre o povo e quem se posta de frente a ele dizendo representá-lo enquanto o ignora, o mundo resolveu avisar de forma prática que o tal crescimento, o tal avanço por sobre a floresta da ignorância, as matas e as trevas de uma brasilidade que ofende a francofonia e anglosaxonisse de sua psiquê, levou a todos pro pântano da seca no sudeste.

É amigos, o tal crescimento sem eira nem beira deu ruim!

E nesse ruim todos chora sem saber se vão pra sala ou pra cozinha fingindo que queimar petróleo não tem nada a ver, achando que deixar pra lá os votos críticos, os endossos aos governos cretinos e assassinos, achando que tá de boa deixar vinte e três presos políticos se foderem enquanto se tenta eleger prefeito.

Se na rua é pau, é pedra, na natureza é o fim do caminho.

E o que resta pra todos? Um resto de toco, um pouco sozinho.

E é no caco de vidro, na vida, no pó, que se ergue a resistência e uma resistência pouco afeita aos salamaleques das casas do povo que acham que Eduardo Cunha pode ser presidente de algo.

Essa resistência cotidiana é quilombola, indígena, preta, pobre, favelada e tá de saco cheio de ficar sem água enquanto a esquerda passa férias em Medelin pesquisando em como ser prefeito modernizando a cidade sem discutir com os pobres.

Essa resistência feita de gente morta que resolveu desmorrer e não se secar como defende quem nada em piscinas reclamando do Alckmin enquanto vota “responsavelmente” na Dilmãe e desfila sua vida de princesa enquanto se diz chocada com a nomeação da Katia Abreu, tá indo pra rua.

Essa resistência vai pra rua querendo tarifa zero pro ônibus, pra água, pra luz, pra comida, pra saúde e querendo saber pra onde foi a água, a árvore, a chuva e porque mataram o cerrado.

E se ela ainda não disse que quer saber é porque ficaram dizendo pra ela votar na Dilmãe que tudo ia dar certo, até que essa resistência se fodeu com a cassação do seguro desemprego, do seguro-defeso que vai obrigar pescadores artesanais a desobedecerem a lei pra comer, mas ela vai querer saber porque parou de chover no Rio e em SP e porque isso a deixou sem água.

A esquerda vai estar lá? Duvido. Ao menos não a que tá no ar condicionado do gabinete sonhando com Freixo prefeito do Rio.

Não adianta pagar de anarquista ou ecossocialista e não dar bom dia ao porteiro.

Semana_tragica

A reconstrução da política passa pela reconstrução dos modos de fazer política e de construir a ideia de política. Parece bazofia, mas é sério.

A política, como é entendida, é tida como naturalização da representatividade, da ideia de um sistema estatal, burocrático e onde democracia é a produção de delegação para a mediação entre quem vota e os ganhos de direitos, o estado, etc.

Se entende, portanto, política como a terceirização da própria vontade, depositada com fé nas urnas, aguardando que quem recebe o endosso para o exercício do poder contemple os desejos individuais e coletivos relativos a quem endossa.

Mas a política assim entendida não é restrita ao ato de votar, é restrita também como a externalização da própria responsabilidade e das lutas cotidianas. Ou seja, se entende a política como externa a si, como produzida pela relação das lutas cotidianas pra fora da gente e contra um ou vários inimigos externos, espantalhos produzidos pela necessidade prática de gerar moinhos de vento que agradem nossos Quixotes.

E é ai que a porca torce o rabo.

A luta política e a própria política entendida como algo externo, onde elegemos representantes de nossa vontade e atores que representam nosso papel concentrando vários papéis que lhe fornecem poder, externaliza questões que são de embate interno e externo.

Racismo e homofobia, machismo, misoginia e etnocentrismo nadam de braçada na gente, em nossos companheiros, nas lutas cotidianas, nos lugares de discurso e disputa política por excelência e permanecem sendo secundarizados, pois os inimigos sempre são eternos.

Os inimigos são o estado, são a direita, são os combustíveis fósseis, a recessão São sempre o outro, jamais nossa própria formação, nós mesmos e nossa participação no cotidiano político.

Por isso é fácil quem diz aos quatro ventos que quer transformar o planeta ignorar o próprio machismo, racismo, defesa de privilégios e se ofender com a dureza de quem combate isso com unhas, dentes, alma. Porque jamais se vê como parte do que se combate, jamais se cobra sinceramente que pra transformar o mundo é preciso também transformar-se e assumir a coerência necessária entre ideia e prática, ideia e ser.

Da mesma forma o fazer politica representa a imensa dificuldade de se transformar o locus privilegiado e hierárquico que foi construído em torno de nossa trajetória. Por isso é mato homens contra o aborto, brancos contra as cotas, socialistas a favor do petróleo, veganos machistas, socialistas e anarquistas punitivistas, anarquistas e socialistas homofóbicos, militantes e ativistas LGBT machistas e racistas, intelectuais produtivistas que se dizem ambientalistas achando que meio ambiente é só árvore, feministas transfóbicas e a lista é imensa.

Quando o inimigo é externo a nós, não interessa nossa própria desconstrução, o inimigo agora é outro. E isso se reflete na forma de se fazer política.

Pouco se apreende que diferenças entre lutadores sejam ultrapassáveis pelos pontos em comum e que é possível construir convergências. O inimigo sendo externo necessita de um foco que limita consensos e inclui entre inimigos todos os que criticam nosso modo de fazer política.

A lógica hierarquizada do fazer política não é apenas marxista ou de direita, é filha dileta da estrutura hierárquica, a mesma que pariu o estado. Ao eleger apenas o capitalismo como o grande vilão, e eleger como co-vilão tudo o que não luta contra o capitalismo da mesma forma como quem usa o processo hierárquico como mote, se estabelece a mesma lógica do inimigo externo e não se traduz o questionamento da hierarquia e da centralização como também um elemento estrutural a ser transformado.

E se o inimigo for a lógica civilizatória ocidental?

Da mesma forma que no racismo e no machismo, na homofobia, a negação da transformação por dentro do eixo hierárquico e centralizado como antípoda da liberdade é a secundarização da transformação do vertical em horizontal, é a negação da luta pela superação do estado ao negar-se superar o estado no interior dos próprios organismos que se dizem combatentes do estado e do capitalismo.

854565001213Nessa negação se constitui o eixo da incoerência da busca pelo comunismo com manutenção de estado tampão, pois essa busca estabelece que para se superar a verticalidade se mantém um espaço vertical de decisão coletiva, e esse espaço não contempla a desconstrução do estado no interior da cultura, ou seja, se nega a ideia da verticalidade e da centralidade opressora como estrutural, assim como o racismo, a homofobia, a misoginia. E ai o método é reflexo de um erro de origem.

O método de centralização e representatividade colocando como externo uma série de estruturas opressoras que devem ser transformadas, secundarizando sempre a maior parte delas em nome da derrubada do sistema, especialmente secundarizando a luta anti-hierárquica, autossabota a transformação estrutural.

Não se muda uma estrutura constituindo-se como seu espelho invertido. E por isso não se muda o estado sendo estado.

Da mesma forma não se muda a estrutura racista, machista, homofóbica, misógina, transfóbica sem mudar o eixo interno, da pessoa pro coletivo, do coletivo pro todo.

Por isso a reconstrução da política passa pela reconstrução dos modos de fazer política. E a reconstrução dos modos de fazer política passa pela reconstrução da ideia de política, de relação do indivíduo com o coletivo, da relação do indivíduo com a delegação de seu poder e com isso a reconstrução da ideia de política.

Por isso não basta se declarar libertário, ambientalista, socialista, ecossocialista ou inca venusiano. É preciso atuar e tem de atuar de fora pra dentro transformando todo o raio de comportamento e pensamento em uma ação prática cotidiana transformadora. Idem mudar a própria relação entre indivíduo e coletivo, coletivo e estado.

Não basta construir uma lógica de emancipação via planejamento democrático ou intervenção municipalista libertária sem transformar a relação entre coletivo e indivíduo, no plano da construção da horizontalidade e do questionamento a si mesmo e seu papel de reforço e reprodução de opressões e predações ambientais.

Não basta construir uma lógica de emancipação sem enxergar a si mesmo como parte da cultura hierarquizada de fábrica nascida no século XIX e se opta por não se transformar da origem produtivista e centralizada, hipernegadora do indivíduo e da liberdade, fiel na fé no progresso e no desenvolvimento das forças produtivas sem considerar recurso naturais, culturas e relações não ocidentais, formas sensíveis de relação com o mudo e o outro. Não adianta pregar uma emancipação que não se retira da própria ideia civilizatória hierarquizada e avessa ao outro.

Não adianta pagar de anarquista e ecossocialista reduzindo tudo á economia, ignorando ecologia, sendo contra o aborto, sendo contra as cotas, achando bonito só desfilar no Leblon.

Não adianta pagar de anarquista ou ecossocialista e não dar bom dia ao porteiro.

A ética da fofura e o espírito do desumanismo

images Na recente polêmica dos testes com animais muitas coisas forma vitimadas que não fazem parte da imagem do instituto Royal.

Uma das vítimas é a razoabilidade mínima, outra é a informação.

O princípio básico de que há uma modernidade tântrica e infalível no mundo que não é acompanhada pelo rincão sem pai nem mãe chamado Brasil, e que a ciência faz testes em animais só de sacanagem virou lei entre o planeta dos ativistas pelo direito animal mais agressivos.

O problema dessa lógica é que não dá pra dividir o mundo entre quem tá de sacanagem ou quem não tá, e nem reduzir a comunidade científica nacional a um bando de pobres-diabos que optam pro preguiça à metodologia mais escrota do mundo, ou por preguiça ou por falta de investimento.

animais-videos-extinçãoA ideia de substituir os testes com animais por outros tipos de testes não só não é nova, tampouco é circular apenas aos meandros “desenvolvidos” da divisão planetária. A discussão é enorme e sim há muito ativismo animal no meio científico, inclusive brasileiro, que entende como fundamental a transição paulatina para o fim dos testes com animais. Só que a substituição por portaria dos testes com animais por simulação em software ou opções piores não é assim tão simples, tampouco sem custo humano, em vidas, menos ainda tão fácil de ser reduzido ao que colunistas de jornal acham possível como “Testes com presos para comutação de pena”.

E não, problematizar a questão não é apoiar “tortura com animais para fazer pomadinha”, embora eu saiba que é tentador para quem acha que simplificando as questões se encontra solução, a satanização da discordância.

Problematizar a questão é buscar soluções dentro do plano concreto e não dentro do mundo de fantasia onde se resolvem coisas na canetada.

A ideia da suspensão imediata dos testes com animais nos leva à questões questão simples: Vamos interromper os testes científicos com substâncias e ir pro pau direto em seres humanos com o custo disso em vidas? Vamos optar pelo risco absoluto da simulação via software com o igual custo em vidas? Vamos optar por cultura de células humanas? Tá, mas isso funciona em todos os casos onde hoje se fazem testes com animais?

É amigos, ainda tem isso “testes com animais” não são feitos só pra “testar pomadinha”. Há questões onde se pode optar por suspender agora e há testes que não dá pra suspender em décadas.

0,,33380267-FMM,00Não vou comentar a lógica de testes com presidiários por uma questão ética, primeiro porque jogar com a liberdade de outrem mediante sacrifício é desumano, segundo porque é óbvia a lógica de desumanização do criminoso.

Testes com voluntários? Vamos lá em ordem e como Jack:

  1. Voluntários podem não aparecer.

  2. Voluntários remunerados são voluntários ou seria jogar com a miséria ou a pobreza em nome da ciência, o aspecto ético não entra ai?

  3. Os testes dando merda numa primeira fase teriam voluntários para uma segunda?

  4. Quem vigia o voluntariado?

Ou seja, toda a questão não é exatamente bolinho e nem tão fácil assim como se propaga no dia a dia, assim como outras tantas questões que eu inclusive defendo não são tão simples.

A lógica de suspensão do uso dos combustíveis fósseis também não dá pra ser por decreto e leva à substituição paulatina da própria matriz energética em uso no mundo, com programa de transição com garantia de emprego para quem trabalha na área, ou seja, é uma luta também antissistema.

Além de ser antissistema, a luta pela suspensão dos testes em animais depende também do avanço científico e mais, de um programa de transição que garanta a segurança inclusive dos próprios animais, dado que sim, medicamentos para animais também são feitos com testes em animais.

191c806fe8a746a4Não dá pra ignorar todos os fatores que trabalham em conjunto com a questão dos direitos animais, inclusive toda a questão cultural da própria relação homem e animal, homem e natureza. Não dá simplesmente para jogar isso pra fora abraçado com slogans e invasões de institutos e aulas de medicina, não é simples assim mudar o eixo de identidade humana como um todo, que passa também pela alimentação, na base da porrada. E não dá pra esquecer que gente honesta, sincera e esperta tá atuando para mudar o sistema de testes de dentro pra fora também e lutando além da lógica de supremacia antropocêntrica com os limites da própria ciência, que só nas últimas décadas se voltou para pensar no assunto.

Não é radical agir em nome da humanização de animais dentro da ética da fofura e desumanizar a humanidade em nome do espírito do desumanismo.

Não somos todos Beagles.

A verdade, o unilateralismo, a beleza, o índio, o negro e o black Bloc

images (1)Todo pensamento unilateral contém o inevitável autoritarismo. O entendimento de algo como uma verdade única, centrada em uma objetivação da realidade é automaticamente inibidor da diversidade e portanto da democracia.

Esta “ditadura” reflete-se na sociedade de muitas formas, desde a lógica do padrão de beleza unitário, que exclui gordas e negras do belo, até o entendimento da ideia de progresso como ligada intimamente ao aquecimento da economia, ao aumento de consumo, ao aumento e desenvolvimento das “forças produtivas”, como se fosse um ligar de uma locomotiva faminta e sem freios na direção do abismo.

201109070815340000004175Produzir significa acumular capital, conforme o pensamento hegemônico, produzir significa consumir matéria-prima e energia para que bens sejam construídos, consumidos em nome de um bem-estar intimamente ligado ao ter. Esta ideia de produção é o carro-chefe de uma ditadura de entendimento da realidade, de um pensamento único, que se vale da concepção que produzir, viver, ter, estar, morar são estados relacionados diretamente com a ideia de propriedade, com a ideia de economia com valoração de cada elemento ao redor do homem, inclusive ele, seja terra, ar, água, bichos, plantas, como se todos tivessem um preço, como se o valor de uso e troca fosse natural, nascesse com cada item da realidade ao redor do homem, líder máximo de uma lógica onde o homem é o centro do universo.

la-pensee-uniqueEsse entendimento é complementado com a recusa de percepção de qualquer outra forma de entender a realidade, de qualquer percepção cultural divergente, como passível de alguma “razão” ou sentido. A concepção de etnias indígenas da terra como parte de um organismo vivo, como elemento fulcral da existência deles para além da economia, da produção, do valor continente no uso da terra, vira anátema, pois bate de frente com a lógica, o pensamento único em torno do qual se ergue a economia e a lógica de vida ocidental, cristã, branca.

Outro aspecto da ditadura do pensamento único é a ótica do que é bom ou não para segmentos inteiros da população. Pobre morar na favela? Não pode e jamais passa na cabeça das pessoas a possibilidade urbanizar a favela, de que favela seja cidade. Greve? Atrapalha o trânsito. Proibir carro no centro das cidades? Atrapalha o direito individual da posse do automóvel, dane-se se o transporte coletivo permanece secundarizado em nome do individualismo egoísta, consumidor de combustíveis fósseis que aceleram os efeitos do aquecimento global. Lutar pelo fim dos combustíveis fósseis? Maluquice, a economia EXIGE crescimento e isso EXIGE energia, EXIGE, o conforto individual, a matriz energética em uso é o petróleo e não se fala mais nisso, energia renovável e alternativa são caras demais!

20090207_non.pensamento.unico.grandeE palavra em torno de muitas destas questões é “custo”, é a centralidade do “custo”, do aspecto monetário sobre todo e qualquer entendimento relativo à lógica do bem viver como mudança dos paradigmas de civilização, para além da precificação da vida, das pessoas, das cidades, da terra, das matas, do existir. O “custo” das coisas é central, o “custo” das coisas é o eixo em torno do qual giram a lógica que prioriza, hierarquiza o que deve ou não ter a economia direcionada para realizá-lo, ou seja, o que é prioritário para a população e sociedade é decidido em torno de “custo”.

E quem decide? Como se dá o processo “democrático” de decisão? Há democracia? Se chega ao todo todas as informações, todos os meios de decidir, o que está em jogo?

imagesPoderíamos elencar também problemas relacionados ao processo de veto à homossexualidade, de repressão à orientações sexuais diversas, à transsexualidade, à ideia do papel da mulher, à lógica de respeito à diversidade étnica, ao racismo, ao racismo ambiental e tantos outros efeitos da ditadura do pensamento único, que parte de uma hegemonia cultural elitista e chega aos jornais e Tvs e é reproduzida, naturalizada, tornada como um elemento dado da vida cotidiana, imutável, asfixiante.

E todo pensamento contra hegemônico é crime, é criminalizado.

Todo método contra hegemônico é crime, é afastamento do povo das lutas, é afastamento da regra, da lei, do bom comportamento, dos bons modos, do bom senso.

E é por isso que toda criminalização dos Black Bloc tem um pouco de navio negreiro.

A centralidade da questão Black Bloc para a esquerda

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Falar de black bloc está muito além de uma análise local, pontual sobre manifestações e ação direta. Muito além de discutir sobre método, sobre a concretização do processo revolucionário, sobre a famosa correlação de forças, sobre ascenso ou descenso de lutas.

Falar sobre Black Bloc é um cerne da crítica da relação entre Esquerda e institucionalidade, entre a Esquerda e a ordem, o estado penal, a percepção de base e da base, a ideia de democracia, a separação entre a reação do oprimido e a violência do opressor.

Como eixo de parte do discurso da esquerda socialista temos um mal-estar gigantesco com a ação direta pelo descontrole visível que tem sobre pessoas, jovens, que atuam de forma diametralmente oposta à sua lógica particular de ação e inclusive de centralismo.

Seja na USP ou na cinelândia, o atropelamento da esquerda pela conjuntura e pelas bases é nítido, chega a ser espetacular. Se diz que os Black Bloc “invadem”, “desobedecem” a “direção” dos atos e pro isso afastam (como se fosse universal) as pessoas dos atos e “justificam a violência policial” como se a Polícia militar precisasse de justificativa pra descer o sarrafo.

images (1)Para negar o que ocorreu em recentes assembleias quando a base do SEPE-RJ decidiu um manifesto em apoio aos Black bloc, culpam a base anarquista por ter inserido isso, ignorando que os demais da base o aprovaram. Para negar a relação íntima entre a base sindical dos professores e estes que os defendem/defenderam de bombas e do cassetete se apoiam nas declarações das direções, ignorando que nas bases há um profundo sentimento de gratidão, que há muitos professores, a maioria dos que conversei sendo do PSOL como eu, que viram e conversaram com os satanizados Black Bloc, e tiveram neles pedidos de autorização para atuarem na defesa dos professores, do acampamento na câmara, etc.

Para negar que há sim uma má vontade criminalizadora dos Black bloc se apoiam numa democracia feita sob medida pro discurso localizado nas universidades e não muito mais: Discutimos em assembleias e assembleias sobre o ato e decidimos. E o ato se ganhasse força de quem não participou delas, como faz? Criminaliza? Se fosse o MST? Se fosse o MAB, o MTST, o Movimento Hip Hop, a APAFUNK? E se fosse uma comunidade de periferia que em apoio à USP se deslocasse até o ato e por muitas razões razoabilíssimas, confrontassem os Policiais? Criminalizaríamos? Não compactuaríamos com as depredações?

black-blocs-2E a tez, a cor dos jovens Black Bloc? A lógica, o linguajar, a forma de andar, se vestir, pensar? Sabem? Querem saber? Porque em muitos casos, na minha ótica na maioria, são negros, jovens, precarizados, frutos da recente lógica desenvolvimentista que varreu o país com crediários e PRO-UNIS e que se serviu de muitos jovens para a propaganda do Brasil Grande e não lhes deu transporte, saúde, emprego, casa, saneamento, futuro. E esses jovens aprenderem a ler o mundo entendendo-se excluídos, entendendo-se fora do jogo, entendendo-se a carne mais barata do mercado.

Nesses jovens a raiva dá pra parar, pra interromper, mas a fome de vida, de luta de melhorar, de construir um mundo onde possam confiar em mais que neles mesmos e nos a seu lado, não dá pra interromper.

A raiva e a fome é coisa dos ômi.

E o que fazemos enquanto esquerda? E sim, estou falando do PSOL, partido do qual faço parte e cujas declarações públicas efetuadas na fundação Lauro Campos e PSOL-RS foram lamentavelmente amestradas, colocadas como similares ao discurso da ordem se não enfaticamente, por medo, por uma lógica de se separar da ação dos “Vândalos”, se separar do que a ordem entende como atrapalhador das manifestações “Pacificas”, E o que fazemos enquanto esquerda? Criminalizamos, se não legalmente, politicamente.

imagesEstas declarações públicas enquanto partido foram as únicas públicas, não houve declaração do PSOL nacional, ou dos demais estados, portanto fica como a cara pública de um partido onde esta questão está longe de vista pelo coletivo de acordo com a vertente citada acima.

É esta cara que o PSOL quer dar aos presos, criminalizados, espancados, que sofreram bala, que apanharam e respiraram gás para deter o avanço das tropas de choque, no Rio, no Cocó em Fortaleza, em Salvador, em Brasília? Que segura o avanço da polícia nas ocupações de prédios públicos Brasil e mundo afora? É este discurso que o PSOL quer comprar como seu?

Porque é preciso estar atento e forte, não há muito tempo de se temer a morte física enquanto a morte política não é apenas um fantasma assombrando a Europa. Não dá para esquecermos que questões internas se relacionam com questões externas, que um discurso aqui se relaciona com a cara do companheiro a seu lado em um ato acolá, e com as pontes, e com os diálogos e com as caras, os preços, a porrada no lombo.

Assim como à mulher de césar, não basta parecer esquerda.

Não dá simplesmente para esquecermos nosso papel como “Partido Necessário” em um debate cuja centralidade está, antes de apoiarmos ou não os Black bloc, em combatermos a violência do estado, a escalada autoritária da sociedade, que passa por Feliciano, Bolsonaro, exército no Leilão de Libra, Cabral, Paes, Wagner, Agnelo e Tarso.

Não foram os Black Bloc que prenderam nossos companheiros, foi a polícia.

Não foram os Black Bloc que nos chamaram de “Vândalos”, foi a mídia.

Queremos ser a esquerda que temerosa de ser radical, embora se diga radical, tem medo de assumir os riscos inerentes das posições políticas necessárias?

Queremos ser a esquerda que com medo da onda fica na areia comentando a onda e dizendo que o mar tá bravo? Ou que quer dirigir as ondas e não surfar nelas?

black-bloc3-400x230Queremos ser a esquerda que criminalizou a rebelião de Watts em 1965? Queremos ser a esquerda que condenou a luta armada na resistência à ditadura? Queremos ser a esquerda que diria que a Revolta da Vacina seria um erro, porque depredaria patrimônio público (Sendo tal público muitas vezes agências do Itaú)?

Que esquerda queremos ser? Domada ou revolucionária?

A revolução não cresce em árvore, e nem espera, não tem régua pra medir revolução, nem manual. E sim, é desorientador o processo de rebelião, revolução, revolta, é sim assustador, como é o primeiro ato sexual, como é a primeira onda nadada e surfada, como é a primeira vez que enfrentamos o desconhecido, assim como é natural apelarmos para a ordem e segurança sob a qual fomos educados anos a fio. O que não é natural, embora nada deva parecer natural, é passado o tempo ficarmos presos ao medo em vez de avançar e avançar para compreender, avançar para entender, avançar para dialogar.

O que não é natural é em nome de votos, cargos, posições sociais, financiamentos, ou sei lá o que mais, emularmos timidamente o discurso da ordem protegendo como patrimônio público a vitrine do Itaú. Culparmos os Black Bloc por atos não funcionarem cheios sempre, como se apenas o medo da violência afastasse as pessoas dos atos e não o dirigismo, e não o oportunismo e não o aparelhamento.

Porque o medo da violência não afasta as pessoas dos atos do Rio, carro-chefe do pau quebrando?

É uma pergunta cujas respostas fáceis são muitas, mas não será porque há uma demanda de opressão radicalizada esperando um diálogo amplo, maior e construtivo para além da formatação do outro em um igual a nós? Não será porque com toda a esquerda presente seja obrigada a democraticamente dialogar, pela obrigatoriedade de não implodir tudo em mil pedaços de nada? Não será porque há uma profunda crítica à violência do estado já enraizada na academia do Rio e que não cai na esparrela de esperar carinho de quem foi criado para ser capitão do mato oficial do Estado?

images (2)O que queremos ser? O que tememos? O que medimos como régua de nossos valores e posição públicas? A correção analítica que se não apoia não criminaliza e tenta explicar? Ou a posição acomodada que apenas reproduz o discurso que cai bem nos ouvidos da dona Benta do Sítio do Pica Pau Amarelo que adora ouvir falar em justiça social, contra a corrupção, sem problematizar muito tudo isso?

Vamos ser a esquerda que exige punitivismo penal? Vamos ser a esquerda que diz que os jovens presos nas manifestações são sim criminosos pois atrapalham nossos atos?

Se formos não contem comigo, não serei cúmplice de mais uma negação dos riots de Watts.