O movimento da vida não deixa que a vida seja sempre igual, já disse Gonzaguinha numa canção que remete a Heráclito de Éfeso.
Não precisamos, no entanto, ir à Éfeso da Antiguidade para conversarmos sobre o momento político e os movimentos de partidos, governo e oposição na conjuntura política do Brasil.
Primeiro precisamos entender os limites das ações dos partidos pró e contra Bolsonaro, do Exército e das forças armadas a partir do hoje e não a partir de um conjunto de exemplos e momentos históricos anteriores isolados numa caixinha de cristal que faz a história se repetir, e sem sequer ser como farsa.
Primeiro precisamos pensar no Exército e nas Forças Armadas como algo mais complexo do que sonha a vã análise política de quintal.
Talvez desde 1870, o Exército e as FA são compostas de frações que atuam politicamente de forma aberta. Já havia republicanos e abolicionistas em um Exército e Marinha dominados por monarquistas pró-escravidão no século XIX.
A República foi declarada viva por um general monarquista que ironicamente se tornou o primeiro presidente da República, e parte do apoio à nascente República veio de senhores de escravos descontentes com o rumo que o Império deu à questão da compra e venda de gente preta. Não que o Imperador fosse santo, mas quando ele resolveu fazer uma mísera ação que prestasse,atendendo à crescente pressão abolicionista (E republicana), deu ruim pro Barba.
Desde os primeiros anos da República o Exército e a Marinha, depois acompanhados pela FAB na segunda metade do século XX, foram atores fundamentais na política nacional.
Desde a proclamação da República, depois com a Revolta da Armada, passando pela Revolução de 1924 e depois a Revolução de 1930, Tenentes, Jovens Turcos, República do Galeão, Golpe de 1964, Abertura, Anistia, Governo Temer e Bolsonaro, Exército e FA atuam e atuaram politicamente e forma aberta, e demonstra divergências em como essa atuação se dá.
Sempre ao lado dos donos de Terra, Senhores de Engenho, Terras e Gentes, as Forças Armadas e o Exército jamais concordaram monolíticamente em como punham em prática seu governo platônico autoritário de Extrema Direita.
Essa divergência também contava com a ideia de como intervir no cenário político, jamais sobre não intervir. Da mesma forma, a compreensão da necessidade de alianças políticas com políticos tradicionais foi palco de divergências e ainda é, com maior ou menor aversão ao que hoje se organiza em torno do Centrão.
O tom reacionário dos governos defendidos pelas diversas frações das Forças Armadas nunca foi problema para nenhum membro delas, as FA são instituições de extrema-direita ou pelo menos ultra conservadoras (aqui e no mundo), mas não há uma concordância explícita sobre o caráter do governo que defendem.
Há nas FA a mesma relação de entendimento ou aversão à necessidade de alianças com forças políticas de fora do campo quentinho de sua ideologia reacionária que há na esquerda como um todo.
Há nas Forças Armadas a mesma divisão entre práticos e idealistas que há no campo da esquerda, as diferença é que na esquerda a gente se encontra nas lutas, nas Forças Armadas o encontro se dá na disputa por meios de usar o Estado para receber um pagamento sobre um idealizado serviço público nos defender de nós mesmos através da sabotagem da nossa frágil democracia.
A questão é que no Clube Militar ou no Campo dos Sonhos as bravatas militares são facilmente ecoadas pelos papagaios de pirata do governo perfeito,na prática a história é outra.
E aí é que entra o limite da realização dos planos militares e Bolsonaristas sobre o mundo da política. Porque do negacionismo da pandemia à satanização da ciência, passando pela tosqueira da ideia de economia e aos esquemas amadores de corrupção com estelionatários o que Bolsonaro tem é um governo militarizado, incompetente e sem salvação.
A um ano da eleição o Governo Bolsonaro torce para que o crescimento econômico seja uma salvação que junto a uma vacinação mal feita, sem plano sem vacina suficiente o ponham como competidor contra Lula, um cara cujos governos tiraram as pessoas do mapa da fome, pôs filhos e netos de gente pobre nas universidades, criou um mercado de cultura nacional, descentralizado e que nos pôs em um ciclo virtuoso de criação e empoderamento de mulheres pretas, de novos atores da canção e da música, gerou novas economias e mercados.
E o que Jair oferece? Nada. Mesmo o tal crescimento econômico que ele apregoa ter ignora o que é em si. Depois de uma queda de 9% da economia, o que se tem ao “crescer” não é crescimento, é retomada e sem política de emprego e renda, que não há, não chega na ponta. Pior, trata crescimento vegetativo como ganho.
Qual a saída dos militares? Ouro, ou melhor, mineração, numa lógica totoca que põe a maior economia da América do Sul como dependente ainda de uma lógica que valoriza mais a extração de minérios e o agronegócio que a produção de dados, cultura e de diversificação da economia.
E o Guedes? Bem, ele tá lá para gerenciar fundos e privatizar,não tem a mais vagas ideia de como produzir qualquer política econômica, nem uma política econômica ruim.
Um governo sem rumo nenhum depende de muito mais que um PP mais interessado em crescer como dominante no parlamento que em gerir qualquer país.
E aí é que erra a análise que põe o PP no governo como a salvação do governo, no máximo estancar a sangria de um impeachment, torna mais difícil, e faz com que o partido dominante tenha meios de se viabilizar como um partido que engloba a votação parlamentar pró-Bolsonaro, o colocando como um grande player na Câmara em 2023.
Talvez fique difícil derrubar Bolsonaro em um impeachment, mas dificilmente o governo deixa de ser um governo zumbi sem uma franca e improvável virada econômica pela via de um programa de investimento estatal e de emprego e renda que dê,milagrosamente, resultado em um ano.
Aprovar Mendonça no STF é ruim, mas o número de boiadas que podem passar na Câmara se reduzem, se fortalece o apoio a uma realização das eleiçẽos em 2022, se estabelece uma mancha na quase morta imagem de outsider do ex-Capitão e põe o PP como um partido que buscará se viabilizar como vencedor nas eleições de deputados, em disputa com o PSD de Kassab pelo controle do Centrão.
Talvez seja até um plano coordenado de dois partidos importantes do Centrão, com movimentos para tanto enfraquecer a tal Terceira Via como para constituir um caminho com um pé em cada canoa importante das eleições no ano que vem.
Bolsonaro continua derretendo, mas agora a agenda da extrema-direita passa a ter um gerente competente para se viabilizar como uma tor perigoso no segundo cenário mais perigoso para nós: o Congresso.
E o PP buscará ampliar seu domínio no Senado, especialmente com o Rio Grande do Sul a partir da candidatura Heinze, que ainda tem mais quatro anos de mandato.
Do outro lado do Centrão, o PSD se estabelece como ator para ser interlocutor do PT no segundo turno e num cada vez mais provável governo Lula.
Ou seja, os dois lados do coração do Congresso estão buscando por um lado ampliar seu papel na composição do parlamento, por outro anular qualquer campo que tente se intrometer na disputa entre PT e Bolsonaro.
E ambos os movimentos disponibilizam uma dedução verossímil: PP e PSD já entendem que Lula estará eleito, mas também entendem o peso ea necessidade de ter o Congresso nas mãos para controlar a agenda.
O papel da esquerda qual é? Primeiro organizar uma resistência que derrote Bolsonaro E o Bolsonarismo, agora, se possível com o impeachment, avançando na conquista de coraçẽos e mentes para derrubar uma tentativa de hegemonia conservadora que tentou silenciar o crescimento da luta anti opressão.
O segundo desafio é constituir um campo de poder no congresso capaz tanto de governar com Lula quanto de avançar com o futuro governo com pressão pela esquerda.
Há setores da esquerda que perdem tempo demais na periferia deste debate e da construção de alternativas, sem organizar um planejamento de ação que componha uma construção de campo real.
No entanto há num cômputo geral ações importantes por parte do MTST, Boulos, campos do PSOL e do PT e que apontam para um investimento concreto, dentro e fora da institucionalidade, para fazer frente a esses dois difíceis desafios.
É fundamental avançar na percepção dos movimentos da vida para que o caminho se dê sem uma derrota antecipada, ou uma vitória de Pirro.
O medo do Golpe precisa ser um ator menor na análise e precisa existir uma construção real de meios de resistir a um campo conservador permanente no congresso que consiga meios até de inviabilizar um governo de centro-esquerda.
A ideia de que novos 1964 estão vindo é uma âncora, não porque a História se repita como farsa, mas porque nada se repete, nem o sol.
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