Em um cenário como o atual a esquerda precisa se lamentar menos e ampliar mais sua luta, sua voz, suas cores.
E isso nas ruas, na chuva, na fazenda ou numa rede social de sapê.
Não estou disposto a esquecer nosso mandato histórico de vez, e acho que é tão normal.
Dizem que sou louco, por eu ter um gosto assim, achar que nem tudo é tão ruim.
Mas metáforas poéticas ruins a parte não é hora de jogar nossas mãos para o céu e agradecermos se acaso tivermos alguma ideologia que faz a gente repensar.
É um momento específico de avanço e explico porque: A ação da direita nos últimos quinze anos não é um avanço, mas uma reação.
Dos anos 1990 pra cá, e não só imediatamente pós-impeachment de Collor, a narrativa histórico-social foi construída em torno da consolidação da democracia, de nossa “jovem democracia”.
Desde o fim da ditadura civil-militar em 1989 (Eu coloco que a ditadura termina quando temos finalmente eleições diretas e não quando um presidente eleito indiretamente assume) o sistema político e a sociedade brasileira girou em torno da “consolidação de nossa jovem democracia”.
E isso sustentou as presidências de coalização que se sucederam, de Collor até Dilma.
A narrativa era que todo rompimento com o “Estado Democrático de Direito” era uma violação do pacto social que venceu a ditadura.
E o PMDB é o símbolo, para o bem e para o mal, desse pacto e dessa narrativa.
O PMDB se construiu ainda como MDB como um organismo de coalização entre forças da direita e da esquerda para resistência à ditadura e depois para a construção do pacto social e do estado democrático de direito pós-1988.
Contendo de Sarney a Requião, entre outros elementos que organizavam desde os coronéis das oligarquias dos estados até as associações de moradores de morros do Rio e SP, o PMDB se construiu como aquele que mantém o pacto social que sepultou a ditadura e permitiu o florescimento de “nossa jovem democracia”.
Por isso foi fundamental na derrota de Collor, que com a narrativa de governo corrupto rompia ano após ano com o pacto social, na pose de Itamar, na sustentação dos governo FHC, Lula e Dilma, até quando qualquer um desses governos ameaçava o equilíbrio desse pacto (segundo o ponto de vista do PMDB e dos pactuadores).
FHC perdeu a eleição quando foi incompetente pra lidar com as crises internacionais que eclodiram de 1998 em diante.
Lula quase foi ao ló quando em 2005/2006 se ameaçou uma crise institucional relacionada a escândalos de corrupção.
Dilma quase perdeu a eleição de 2014 porque não conseguiu manter um gerenciamento competente da economia em meio a uma enorme crise econômica mundial, e foi destituída porque no enfrentamento a esta crise não foi competente, implementando medidas que a agravavam (apostando numa austeridade falida que nem a Troika quer mais defender) e, já institucionalmente frágil, não soube frear o avanço das investigações sobre o PMDB na Lava-Jato.
Em todos esses anos o PMDB foi diretamente responsável ou pela estabilidade ou pela desestabilização dos governos supra citados.
E por que? Vide o comentário acima sobre o papel do MDB na ditadura e posteriormente.
Porque o PMDB desde MDB se construiu agregando as oposições aos poderes da ditadura nos estados e municípios, agregou de parte da esquerda que estava na ilegalidade (E depois migrou pra o PT, PDT, PSB,etc) até parte da direita que era oposição conjuntural a outros elementos de direita.
Esse papel de “Movimento pela democratização” fez o MDB ter uma capilaridade invejável, e ao fim da ditadura essa capilaridade ganhava o perfume de vitória.
Parte da esquerda que ali estava não teve dúvidas em permanecer na máquina que ajudou a construir e lhe permitiria avançar sobre o estado.
Parte da direita permaneceu por ser poder e com isso vencer seus inimigos no mesmo campo ou cooptar-los em posição subserviente.
Esse máquina política avançou na nossa “jovem democracia” como avaliador dos poderes centrais e sustentador ou desestabilizador de governos dependendo do papel que exercia.
Primeiro porque sua característica sui generis de composição para ideológica impedia uma unidade que garantisse a um dos seus um favoritismo à presidência da república.
Segundo porque, virtualmente sendo governo e oposição pra sempre, conseguia algo invejável para qualquer força política em nossa história: Se estava sempre com o controle do estado, independente da força que possuísse a cabeça dos poderes.
Esse papel permitiu ao PMDB garantir-se como um partido praticamente inatingível.
Ao menos até hoje.
Por que até hoje? Porque desde que o PT ameaçou o PMDB em sua principal característica, a capilaridade e o controle do estado nos mais diversos estados e municípios, o PMDB tornou-se governo e chefe em vários postos onde para manter-se teve de organizar em torno de si uma cepa ideológica específica.
Desde os últimos dois anos o PMDB perdeu a cada dia suas características de “geleia geral” e tornou-se finalmente um partido puramente ideológico.
A própria ascensão de Temer garantiu isso, seu ministério é uma assinatura e essa característica não faz ficar à vontade nem oligarcas como Renan e Sarney, nem rebeldes como Requião.
Para eleger Pezão o PMDB abraçou Dornelles e perdeu o PT. Para eleger Sartori o PMDB abraçou Yeda e o PP, ideologicamente, e perdeu qualquer semelhança a Rigotto e Britto.
Para manter Temer o PMDB abraçou o DEM de Escola sem Partido e o pior do PSDB, além de também apostar numa austeridade falida que nem a Troika quer mais defender.
E sequer foi competente para evitar que uma rebelião interna de sua ala coronelista pudesse a perder ambos para tentar salvar Cunha, a partir da não cassação dos direitos políticos de Dilma.
Mas essa explicação dá conta apenas do caráter institucional da conjuntura,não?
Sim,mas ele espelha outros aspectos que explicam porque esse movimento simboliza também uma ação da direita que é uma reação.
Um desses aspectos foi o surgimento de uma demanda social desde os anos FHC onde os direitos humanos se tornaram elemento central no debate em torno do Estado e da sociedade.
Essa demanda e essa narrativa se espalharam por anos a fio na formação profissional e acadêmica dos mais variados campos do conhecimento, especialmente como resposta à ditadura militar.
Os cursos que formam professores são cursos onde o debate de DH é extremamente presente.
Além disso, desde o fim dos anos 1980 essa demanda ganhou também o avanço e consolidação dos movimentos sociais e estudantis como elementos centrais da organização política da sociedade brasileira.
Nas favelas, vilas e bairros pobres houve um paulatino crescimento das organizações populares.
O debate em torno das questões de gênero, homossexualidade e transgêneros foi paulatinamente se construindo como elemento fundamental do debate do papel do estado e da sociedade na garantia de direitos.
E isso desde o fim do governo Itamar tornou-se uma demanda.
Nos governos FHC inclusive o debate em torno de DH foram muito mais ricos e democráticos que durante o segundo governo Lula e o primeiro governo Dilma.
Ampliou-se com Lula o acesso dos mais pobres, e pretos, à universidade, ampliaram-se as universidades públicas, aumentou o número de conferências que discutiam cultura, educação, saúde e comunicação.
Essas conferências foram transformadoras em vários sentidos, mesmo que usadas pelos governos como ferramenta de cooptação, porque estabeleceram minimamente organizações e participação popular a partir de bairros e municípios até Brasília.
Paralelo à participação em conferências ampliou-se também o número de movimentos e organizações que construíam lutas cotidianas e mobilização nos bairros pobres, favelas e vilas.
Se os partidos de esquerda cresceram, cresceram também as organizações não partidárias que dialogavam para além da juventude de classe média.
As igrejas também retomaram as organizações pastorais com fôlego, mesmo que muitas inicialmente distantes de qualquer similaridade com a teologia da libertação e fruto dos movimentos da direita católica.
As igrejas pentecostais também ampliaram seu papel de presença política de forma bastante feroz, com a entrada em peso de diversas denominações na política partidária, sendo em sua maioria de direita, mas também gerando movimentos de esquerda no interior delas.
Todos esses movimentos geraram o que?
Uma intensa politização da sociedade, e não o contrário, e uma direção clara de confronto entre as diversas forças organizadas.
Esse confronto ganhou fôlego nas redes sociais, mas também nas ruas.
Discute-se política hoje no cotidiano muito mais do que se discutia há vinte anos.
Apesar da limitação “teórica” desses debates ela é uma vivência política que explode em uma conjuntura de alvoroço.
De uma sociedade que romantizava direita e esquerda, e um caráter pacífico de uma cultura brasileira imensamente autoritária e violenta, temos uma politização que opõe ferozmente ideologias, conservadorismo ao feminismo, conservadorismo ao transfeminismo e luta LGBT e “democracia racial” às denúncias de racismo.
A “Pax democrática” da institucionalidade foi pro saco porque a política se tornou capilarizada em todos os setores sociais, em todos os bairros da cidade, em todas as cores de pele e condições sociais.
Por isso vemos anarquistas, comunistas e autonomistas confrontarem conservadores no Morro do Alemão ou entre adeptos do Black Bloc termos do playboy de Ipanema ao fudido morador de Santa Cruz e entre quem defende que Black Bloc morra desde o branquelo de Três figueiras ao pretinho de Vila Cruzeiro em Porto Alegre.
E é neste momento que o PMDB deixa de ser o endosso ao sisterma e se torna parte do sistema, adepto de um lado. E também é neste momento que o PT entra em crise e pode se desmanchar entre quem ainda dentro dele é esquerda e quem ainda dentro dele acha que pode recuperar a “paz social” do lulismo.
Por isso o PSDB mata quem dentro dele ainda sonha com o liberalismo clássico, e a política pós-rancor de Marina vira piada com seu programa liberal envergonhado e seu discurso que beira a omissão.
E Temer ao dizer que busca a pacificação pode até achar que cola, mas ninguém quer paz em lado nenhum. Um discurso fraco de um presidente fraco.
Nesse quadro onde a reação aos movimentos da sociedade de conquista ampla de direitos deixa de intermediar a “paz social” com discursos brandos e tentativas de acordo, qualquer espaço que a esquerda garanta de avanço é latifúndio.
E esses espaços não estão parcos ou poucos, nem a direita avançou sobre eles, ela tão preocupada em atacar e menos em ocupar,resistir e produzir.
Os espaços permanecem amplos e permanecem sendo ocupados nas universidades, escolas, associações de moradores,etc e devem permanecer sendo ocupados, com enfrentamento rua a rua, sala a sala de qualquer coisa que simbolize recuos.
Seja em comitês contra a PEC 241, seja em conselhos municipais, cada espaço é fundamental.
Também é fundamental que a esquerda que se organiza institucionalmente politize seus discursos. Porque é fundamental que a esquerda institucional vença as eleições.
E achar que a vitória de quem se identifica como esquerda nas eleições é conjunturalmente boa não me faz nem endossar o sistema, nem fazer campanha pra eles ou me identificar com a narrativa de menos pior.
A vitória eleitoral das esquerdas não só é boa como símbolo, porque interfere pouco nas lutas cotidianas e em vários sentidos até atrapalha,mas também em reduzir o avanço da direita sobre o Estado.
Além disso, a vitória eleitoral das esquerda traz um sinal pra direita, a questão é que a direita sempre reage ao sinal e a esquerda tende a confortar-se com a vitória eleitoral como se vitória fosse em todos os sentidos.
Uma vitória eleitoral das esquerdas deve ser tratada como oportunidade de luta contra hegemônica em possível expansão, e como meios de ampliar a audição de pressões da base pra cima, jamais como ponto final da luta.
Pra isso a esquerda deve prender-se menos no aspecto imediato dessas vitórias, e na leitura da política enquanto ocupação de espaço, e mais na organização da ocupação de espaços como meios de construir uma sociedade mais libertária.
O quadro conjuntural aponta para uma sociedade mais politizada, mesmo que sem a etiqueta de aprovação do marxismo elitista de galinheiro, e politizada à esquerda e à direita. Essa sociedade exige que a esquerda tenha ação e projeto, se organize enquanto ator que constrói uma percepção de sociedade e estado.
É hora de parar de calar quem discute gênero, transgênero, LGBT, ecologia, questão racial, questão indígena e horizontalização dos processos decisivos e atuar como ampliação da polifonia de questões a serem resolvidas nas sociedades e no estado.
É hora da esquerda aproveitar o ataque vindo do Escola sem Partido para discutir educação libertária em cada espaço e o quanto isso depende de mudanças drásticas na educação, que mande a “accountability” pra vala e organize-se enquanto elemento de construção de espaços cidadãos.m é preciso discutir educação integral, artes, esportes, ensino de História voltado pra pesquisa e formação intelectual e não pra memorização de datas e por ai vai.
É preciso hoje que a esquerda amplie seus espaços, e impeça o avanço da direita sobre os seus espaços nessa sua reação desesperada. Para além disso, é preciso que o debate saia do parco, deixe de ser em torno apenas da institucionalidade e se torna um debate em torno da própria concepção de mundo.
A sociedade está politizada o suficiente para que o debate ocorra,mesmo que parte dela queira matar a esquerda.
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