Há doze anos trabalhava como suporte técnico em uma empresa de informática e cursava com preguiça uma faculdade de História que achava que também não terminaria, como os cursos superiores que tentei antes.
Há doze anos trabalhar era um penar, era como o mais desmotivado dos seres a caminho do abate, por melhor que o serviço fosse executado, bebia muito, vivia com uma raiva do mundo que mal me permitia afetos.
Até que recebi um convite para trabalhar com História, como consultor em patrimônio cultural, um dos muitos campos abertos pelos governos do PT e sua gestão da Cultura. Governos estes que desde 2003 recebia a oposição do partido, o PSOL,do qual faço parte.
Deste trabalho em diante, de 2009 para cá, a vida, a motivação, o horizonte, mudaram. Até o golpe em Dilma Rousseff de 2016, moro com uma companheira, me tornei pai de um filho autista, me formei, fiz mestrado, trabalhei até 2015 como consultor e ainda consegui uma das últimas bolsas disponíveis para mestrado durante o governo Temer.
Do fim da bolsa, em 2019, para cá, o que veio foi desespero. Os cortes e a gestão desastrosa de Temer para a Cultura e a Educação parecem hoje um paraíso diante da conjuntura de desastre e eliminação de campos inteiros da sociedade, da cultura e da economia sob Bolsonaro.
O que era esperança em 2009 e a conquista de uma maturidade que não havia, um sonho realizável, em 2021 o que temos é uma escuridão sem jeito, uma universalidade de trevas e dor.
Esse é o sentido na alma de quem viveu a política partidária e institucional de forma enfática e participante, de quem faz análise de conjuntura e tem tempo e até por questão de trabalho vive olhando os sinais com lupa.
Essa é a memória de quem tem tempo e por ofício precisa ver os sinais das notícias, dos discursos, dos movimentos políticos, mas e a memória de quem mal tempo tem para sobreviver e respirar ao mesmo tempo?
É nesse sentido que precisamos tratar nas análises sobre a conjuntura, a economia, a política. É desse som que nossos ouvidos precisam se apropriar para entender o hoje e a ponte pro amanhã.
E por que? Porque a economia moral da multidão oferece também uma economia moral dos afetos e das memórias onde o comer e o sorrir ganham significado parecido e onde o filho desempregado era o filho que entrava na faculdade, o primeiro da família.
Da esperança, mesmo uma esperança raivosa em 2013, que se entendia livre para dizer , que não era só por vinte centavos, à raiva rancorosa sem esperança de que se vinga de quem prometeu sonhos e não foi capaz de todos realizar, chegamos na desesperança desesperada e cujos sonhos voltam a aparecer possíveis no retorno de Dom Sebastião.
E não, não é uma crítica a Lula, pelo contrário, é um desenho de como os afetos da multidão migram da negação vingativa para afirmação da boa memória de um tempo onde comer era possível.
Comer, planejar uma carreira, sonhar com um lugar no mundo, tudo isso miou e virou cinzas sob chamas que queimam matas, cinematecas,museus, aldeias, que matam indígenas, que deixam por negligência uma montanha de cadáveres que tinham família, mãe, irmã, namorada e que poderiam estar vivas se Bolsonaro não fosse pelo menos omisso com ladrões de vacina.
Há no horizonte uma brecha pro sonho de comer e planejar o futuro, e esse poder da memória de um passado melhor, sob aquele que não é identificado com o PT que foi combatido em 2013, não pode ser negligenciado sob camadas de pensamento mágico que analisam uma retomada da economia que não passa pelos pobres e uma vacinação que não esconde os pais e filhos mortos, as mães e avós dizimadas por um governo genocida e que ria de quem morria de COVID.
Voto impresso, anticomunismo, tudo isso hoje é vinculado com quem dizia que não era coveiro enquanto as pessoas morriam de COVID. Falar de retomada da economia enquanto 19 milhões passam fome e 60% da população acha o presidente desonesto, mentiroso, incompetente e burro, é rir da inteligência da multidão.
E se não existe nenhum planejamento de retomada real da economia por investimento estatal, como se pode falar em retomada da economia?
Se só o que se aponta são as malditas reformas econômicas, que empilhadas produziram o desgraçamento do país e o estrangulamento do estado, gerando zero emprego?
Como achar que haverá uma retomada real da economia, com crescimento real, abertura de postos de emprego, políticas de renda que vão além do aumento do Bolsa Família(que sem aumento da base recebedora tem efeito minúsculo no processo), se não há plano algum além de reformar mais o Estado?
E essas reformas são para gerar uma economia que só seria sentida na próxima década e ao custo de uma deterioração da capacidade de atendimento e investimento deste mesmo estado.
Enquanto isso, o pouco que o pobre recebe vai para comprar comida que aumenta muito mais que a inflação medida nos noticiários, e quando o aquecedor ou o ventilador queimam ele precisa tirar o nada que recebe para comprar algo que aumentou mais de 100% em um ano, ou morrer de frio ou calor.
A Economia Moral da Multidão percebe a imoralidade cruel dessa lógica dos de cima, a Economia moral dos Afetos migra para quem aponta pro sentido cultural e pleno do comer, do sonhar, do amar, do sentir.
E é por isso que fracassa o dois ladismo, a falsa simetria, a canalhice de chamar de polarização a luta entre o nazi fascismo devorador de mundos e sonhos e a democracia pela esquerda de um projeto que entregou um país melhor do que recebeu.
Fracassa também o nazi fascismo em construir mais do que uma minoria de malditos canalhas que por misoginia, LGBTQIA+fobia,transfobia, racismo, xenofobia e masculinidade tóxica, pau pequeno físico e moral como resistência do que é a real salvação da civilização: a resistência anti opressão.
Talvez seja por isso que o mundo dos tempos expõe o ódio de classe de parte da suposta intelectualidade, do germe do fsascismo da imprensas dita liberal, que chama incêndio à estátua do Borba Gato de terrorismo e cala sobre a Cinemateca em chamas e monumentos à Marielle e Marighela sujos de tinta.
Porque os movimentos que põem para baixo as estátuas da supremacia masculina cis hetero adulta branca, expõem o pau pequeno moral de uma civilização que tem o focinho de porco de usar o fardo do Homem branco como álibi para destruição, são uma tsunami que ataca a longa duração. E da queda da Bastilha ao incêndio de Borba Gato tem muito mais ferramentas de onde saiu o movimento da vida que não quer e nem deixa que a vida seja sempre igual.
É a energia da transformação do desespero em sonho que vive a maldição de quem sustentou o nazi fascismo nos muitos poderes e é do desespero de quem se vê em queda que se alimentam sonhos de governos democráticos, para que sejam possíveis caminhos de debate das tantas formas de revoluções necessárias.
A Economia Moral da Multidão gera a Economia Moral dos Afetos, o entendimento econômico de onde investir sentimentos e energia que geram a produção mediada de novos campos dos sonhos.
E nestes campos morre à míngua a indústria do ódio.
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