O destino manifesto do comunismo vulgar.

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O título desse texto podia ser a respeito do marxismo vulgar, mas até o marxismo vulgar possui uma vibração menos hegeliana e antidialética que o comunismo vulgar, exposto em lamentáveis linearidades, messianismos e crença não materialista e quase metafísica numa revolução que é menos processo e mais uma inevitável exposição de um destino manifesto.

A revolução que é de uma inevitabilidade que faz dela um ente: a Revolução, que é quase um evento escatológico. No princípio era o verbo, no fim A Revolução.

Essa linha produz consigo um revival do stalinismo com o que parecia quase impossível: seu louvor acrítico às dinastias soviéticas que se seguiram na defesa do socialismo em um só país, e menos teórico ainda que o produzido a partir das garras do georgiano bigodudo.

Se o stalinismo já trazia consigo uma deterioração do marxismo com seu socialismo em um só país, o etapismo, a guinada que levava consigo uma retomada do hegelianismo e da inevitabilidade do progresso e da razão na libertação da classe trabalhadora como se a realização histórica a partir do mundo ideal, o neo stalinismo engraçado faz do produto dos partidos comunistas do século XX um pastiche que piora ainda mais a teoria em torno do socialismo a partir dos olhos de Stálin, produz uma ideia de que o comunismo tem uma tribo em torno de si que tem o destino manifesto da libertação do homem.

A Revolução virá, sabe? Ao ler os escritos stalinistas atuais, e não só, ao ver seus vídeos a gente percebe uma ideia de esquerda, de luta, de produção revolucionária que traz consigo não a dialética marxista e tudo o que a envolve, a investigação sobre o cotidiano, o dia a dia da classe trabalhadora e da própria classe enquanto relações ou ente, mas seu inverso, sua categorização em espaços estanques.

E essa linha traz da obra e vida de Marx, Engels, Rosa, Lênin, não elementos teóricos que permitem uma ideia metodológica sobre o real e a produção de meios que permitam à esquerda atuar como indutora para que uma revolução ocorra, que dialogue com a classe a procurar sua realização e que enxergue o momento histórico de sua eclosão, para lidar com as questões da classe de forma a liderá-la, mas verbetes, versículos, ditos, apontamentos messiânicos sobre como lidar com o hoje a partir das palavras de poder do antigo sábio comunista que aponta nosso destino manifesto.

Isso sequer é novo. Benjamin apontava essa tendência nos anos 1930, e Hobsbawn fala disso explicitamente em sua obra “Sobre a História” (Capítulo 15, página 206).

A ideia de uma inevitabilidade histórica do comunismo/socialismo, a leitura estanque de uma relação torta entre superestrutura e infraestrutura colocando o econômico como uma base que produz a cultura, ignorando as circularidades das relações entre cultura e economia, e outros tantos fatores, assim como entre as classes e no interior delas, tudo isso é uma herança do revisionismo marxista ou marxiano dos primeiros anos do século XX e continua até hoje a partir de bases teóricas definidas ainda antes da Primeira Guerra Mundial.

E à revelia da superficial antítese entre os revisionistas da social-democracia alemã com o comunismo de Lênin que posteriormente foi tomado, relido e abraçado por Stálin defendendo-o como Marxismo-Leninismo, essa tendência teórica, por vias tortas, saiu do revisionismo pequeno burguês eleitoreiro para o discurso dos defensores do socialismo em um só país, combatentes contra a revolução permanente.

A própria crítica à transformação, por Kautsky por exemplo, das ideias de Marx em um rearranjo teórico que incluía evolucionismos e positivismo à revelia de releitura modernizante ou a ideia da data de validade de análises sobre a história, como a ideia de Bernestein da necessidade de atualização das ideias de Marx para novos contextos históricos, uma atualização que incorporou o idealismo hegeliano anterior à própria dialética marxista, ignorando que o processo dialético e a própria ideia de Marx das características de sua análise obrigar a uma rediscussão cotidiana das condições objetivas e subjetivas dos processos históricos, saiu de um discurso que confrontava a ideia de revolucionários como Rosa Luxemburgo e Lênin para o interior, para a alma da teoria marxista que virou o eixo do que os PCs produziram como teoria a respeito da revolução via normas do comitê central do PC da URSS.

A própria ideia do etapismo, que pensava as alianças com as burguesias nacionais como etapa para uma revolução burguesa e posteriormente produzindo uma revolução socialista tá ali na ideia de Bernstein, na releitura de Kautsky e depois na produção teórica dos PCs pós Stálin.

Isso renascer nos anos 2010 do século XXI é uma espécie de retorno como farsa, assim como a eleição de Bolsonaro.

Não há a necessidade de falsa simetria pra discutir as proximidades entre o Bonapartismo do neopresidente ex-capitão e o sonho molhado de um Comunismo hegeliano com amores autoritários e releitura torta do combate ao imperialismo e saudades de Gulags e Stálin, fingindo que é bacana pra caralho campos de concentração que mandavam pra morte gente que era tão comunista ou mais que o senhor Georgiano, mas ameaçava sua obsessão messiânica que faria existir um culto à personalidade que quase tinha a face de uma religiosidade marxista, por mais contraditória que seja (Leiam Benjamin a respeito).

Marx já sacava a batata quente da idolatria de sua teoria antes de morrer, Engels tretou com a edição de seus escritos pela social-democracia alemã com o intuito de dar a distorções do que ele escreveu um sentido de endosso histórico de um dos totens tabu humanos do comunismo.

A questão é que tem teoria a rodo pra deixarmos de trazer pro coração de uma luta/teoria em si internacionalista, que se rediscute e se refaz a cada novo tipo de transformações de processos históricos e que produz novas percepções à exaustão a partir de Marx em torno de todas as suas descobertas relativas às ciências humanas ou até mais que isso, da economia à história, passando pela ecologia.

Fica bastante incompreensível pra quem lê Marx preocupado com as transformações ambientais a partir do capitalismo provocando queras metabólicas ver que neo-stalinistas reproduzem um discurso anti-ambiental em prol de um desenvolvimento econômico que rima mais com a UDR do que com o velho Karl.

Mais ainda ver reprodutores de uma ideia de classe como algo dado que ignora todas as descobertas a partir da categoria formulada pro Marx da classe como fenômeno histórico, ou seja, fruto de contextos que são diferentes em lugares diferentes, e que é um processo de determinação relacional, ou seja, uma classe existe no tempo, espaço e em relação a outras classes e não como algo que brota a partir do advento do capitalismo.

Piora quando vemos os stalinistas autoproclamados marxistas ignorando que o que Marx entendia como uma aplicação do que ele produziu como teoria não eram as formas autoritárias que ele combatia a partir das visões platônicas e positivistas de parte do socialismo que ele chamava de utópico, mas a Comuna de Paris.

Outra coisa é a ideia de uma superação do Capital como algo que virá, impávido que nem Muhamad Ali, e não fruto de um desgastante, longo e tenaz combate diário das forças socialistas e comunistas para produzir uma base organizativa das classes trabalhadoras que produzam a revolução ou aproveitem as ondas de sua eclosão nos momentos em que os processos históricos a tornarem inevitável em sua diversidade de tempos, lugares e características específicas da classe trabalhadora em seus contextos.

O fato da história ser movida pela luta de classes, considerando que Marx quando criou o conceito não tinha ideia da possibilidade e classe ser um fenômeno histórico (O cara produziu uma cacetada de coisas, mas não era Deus), não faz com que essa luta tenha uma linearidade e um destino manifesto da classe operária na superação do que a oprime por inércia. Da mesma forma toda a teoria que permite à classe a posse de ferramentas de análise do real que a empoderem para o combate pela sua libertação não é um conjunto de normas dogmáticas sagradas que recitamos enquanto abatemos carneiros em holocausto ao Deus da Dialética.

A teoria é ferramenta, não dogma. O cara que chega com a teoria é alguém que atua COM a classe, não por ela, menos ainda como líder dela. É na classe que surgem as lideranças que com ela encaminham o processo de sua libertação, afinal.

Ter a ideia do socialismo/comunismo como destino manifesto; a distorção da própria ideia de nossa necessária internacionalização para um nacionalismo supostamente anti-imperialista, mas fã de se tornar um “imperialismo do bem”; a negação das necessárias percepções do real que nos expõe que a contradição entre Capital e Natureza superam até as contradições entre Capital e Trabalho, na prática, no encaminhamento de extinções em massa, inclusive a nossa, e no efeito que o ataque do Capital à natureza causa à classe trabalhadora, tudo isso tem uma característica em comum que torna o marxismo vulgar um hegelianismo que nega o que Marx produziu: a ideia e a ação que tornam seus defensores reprodutores de linhas genericamente modificadas da base teórica marxiana e repetidores das falas de grandes marxistas como mantra.

É fundamental que atuemos como protagonistas de discussões que exponha que não há uma revolução no horizonte pro haver horizonte, mas que para que a produzamos precisamos de organização e ação cotidiana, não colonizadora ou messiânica, mais produtora de uma práxis libertadora que dialogue com o real a partir de bases teóricas marxistas.

Ter uma mente onde exista um destino manifesto é um entrave, não uma necessidade de militante que busca em Marx um caminho teórico de melhor compreensão do real e ferramentas para o empoderamento próprio e coletivo na luta de classes.

A redução do marxismo a seu aspecto teológico e ao comunismo como uma reprodução como farsa de um stalinismo que já era um problema em 1956, se tornando um marxismo vulgar que remete a Hegel, só produz revoluções no estômago.

O debacle das grandes narrativas

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Não é nada novidadeiro o debate a respeito do fim das grandes narrativas a respeito da história, política, etc. Pelo contrário, há análises que fazem uma profunda reflexão a respeito das grandes explicações sobre os processos históricos e sociais desde o fim do século XIX e início do século XX.

Nietzsche já fazia reflexões que questionavam a história e seus fios explicativos como “excesso de memória”. Walter Benjamin entendia as grandes explicações estruturalistas, embora ele não usasse essa terminologia, como um viés explicativo parelho ao das mitologias e religiões, a própria ideia do progresso como um desejo transformado em pensamento, quase um pensamento positivo, que antecipava a história e buscava um final dos tempos parecido com o fim de narrativas ficcionais. Aqui a história para ele era narrada como uma espécie de ficção que se assemelhava às novelas e folhetins.

Dos anos 1950 do século XX em diante a crítica às grandes narrativas a ao estruturalismo, às definições gerais, universais, que faziam tabula rasa das experiências complexas da humanidade, tornando-as mensuráveis, praticamente definindo leis gerais das ciências sociais e da história, como se fosse possível para uma gama complexa de sociedades diversas ter seus movimentos exprimíveis como o são os fenômenos físicos ou químicos a partir de suas leis naturais (sendo que estas desde os anos 1920 também eram questionadas como universais por suas ciências ditas “naturais”).

De lá pra cá a ideia de nacionalidade, raça, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, sexualidade, entre outras questões, foram flexibilizadas pela ampliação do arco analítico em torno dos fenômenos humanos e sociais.

Não houve um processo ideológico, no sentido político, que especificamente deu andamento à produção de diversificação explicativa sobre cultura, sexualidade, gênero, identidade étnica, não foi um processo ordenado e planejado para tal, mas a explosão de diversos movimentos e reivindicações das mais diversas áreas e identidades, do feminismo à luta antirracista passando pela luta LGBT e pelas reivindicações de autonomia de países colonizados pelos Europeus, especialmente na África e Ásia.

Esses processos levaram à ampliação da percepção da própria ideia de indivíduo à reavaliação dos processos analíticos herdados do século XIX, pois se havia, e há, princípios fundamentais para as bases do pensamento científico, também havia reducionismos como os que não incluam percepções filosóficas de civilizações profundamente marcadas pela oralidade, como grandes grupos indígenas das Américas e austrália e as nações africanas, cuja história pré colonização europeia era passada através de gerações pela cultura oral.

Escrevo esse preâmbulo porque parte dos ruídos ocorridos nas eleições recentes no Brasil, e no mundo, se dá nos marcos de ações e reações em torno dos embates que se estruturam pela retomada das ideias naturalizadas historicamente em torno de elementos como nacionalidade e sexualidade e quem repudia as amarras supostamente civilizacionais impostas a negros, indígenas, mulheres, LGBT e transgêneros.

Não raro abraçados pela extrema-direita, os valores explicativos de razões que ultrapassam as ditas identidades são estabelecidos na estrutura de explicações universais sobre a história, as nações e características ditas como “natas” a respeito do que são homens, mulheres, negros, indígenas, etc.

Ou seja, tudo o que foge de explicações rígidas embasadas e envelopadas pelo mofo do século XIX como “homem e mulher são o que Deus inventou” ou “negro e índio são indolentes” é transformado e uma degeneração de uma ideia de purismo nacional e da própria ideia de indivíduo, e transformados em ações externas, propostas de fora pra dentro do “coração da nação”, por “comunistas” e outros inimigos naturais do bom senso branco hétero.

Esse embate simplificado aqui é fácil de perceber e identificar no discurso reacionário contra as lutas chamadas “identitárias”, pois o embate político organizado em torno dos valores explicitados é de comum percepção, mas ele também se encontra na contrariedade de parte da esquerda contra o movimento #Elenão, no Brasil, culpado por 9 entre 10 militantes pelo crescimento de Bolsonaro no fim do primeiro turno.

O equívoco inicial na avaliação da culpabilidade de um movimento suprapartidário de cariz feminista contra a extrema-direita só foi enrustido, e um pouco reduzido, quando matéria da Folha de São paulo deu conta de um milionário esquema de divulgação de notícias falsas organizado em torno da mesma extrema-direita e que explica com muito mais facilidade o crescimento do candidato alvo dos movimentos do que a ranzinzice reacionária da esquerda com os mesmos.

No mesmo período também ocorreram declarações desastrosas por parte de José Dirceu e Gleisi Hoffman dando conta de uma vitória do PT muito antes do fim do primeiro turno, mas a esquerda menso atenta preferiu culpar o movimento de mulheres por um crescimento de Bolsonaro alegando que a culpa era que “o movimento não tinha pauta clara e deveria focar no econômico”, como se o movimento suprapartidário e poli ideológico tivesse que construir consensos que não conseguiram os partidos e movimentos não relacionados especificamente com mulheres, indígenas, negros e l!!br0ken!!

Pior era a velha e carcomida busca de produzir a superioridade do econômico sobre todas as coisas, ensaiando um marxismo caquético e pouco oxigenado, mesmo depois de mais de 50 anos de embates e debates por marxistas, ingleses, franceses, etc.

Sabe tudo oque se produziu em história, sociologia, antropologia e ciência política? Ignorados porque o formulismo em caso de não compreensão da enorme transformação nas percepções do real sempre culpará o “identitário” ou o “pós-moderno” pelos males não percebidos nos encaixes forçados das velhas fórmulas.

Pior é imporem uma ideia de marxismo que ignora os aspectos culturais e o processo de formação das consciências de classes e que diverge do próprio Marx, que se explicava que sim, a cultura tem elementos do econômico em sua organização, e do político, também definia o processo ideológico como uma produção que impunha uma percepção ilusória do real pela burguesia ao proletariado, através dos aparelhos de reprodução ideológica (igrejas, jornais, escolas, etc).

A questão é que com uma maior percepção das variantes que compõe a individualidade, os papéis executados pelas pessoas, que são mais que homens ou mulheres, mais que proletários em oposição a burgueses, mais processos de percepção do domínio e opressão burguês sobre o proletariado foram perceptíveis, assim como mais e mais percepções sobre como parte do proletariado não atua para romper as amarradas que o impõe a classe dominante.

E essa percepção foi e é fundamental para uma identificação do processo que se relaciona com a construção da consciência de classe, seu caráter por vezes diáfano, as dinâmicas que se interpõe entre esta consciência e o todo da classe operária e as cunhas das opressões transversais que atuam também no interior da classe operária onde também persiste a misoginia, o machismo, a LGBT fobia, o racismo, a xenofobia, e porque isso interfere na conquista da consciência de classe e como as classes dominantes utilizam os preconceitos que sustentam as opressões como ferramentas de domínio de classe.

Por isso é fundamental perceber que as tais lutas “identitárias” não são outra cosia além da própria luta de classes, porque lutar contra todas as opressões é fundamental para lutar contra o que divide a classe trabalhadora e com isso ampliar os meios pelos quais a experiência e identificação de laços que nos unem maiores que nossas diferenças é fundamental para que conquistemos a consciência de classe.

As grandes narrativas abolindo a diferença e as chances dos processos que ocorrem no interior das classes ganhem aluz e sejam entendidos como parte dos grandes processos, e fundamentais interventores nestes grandes processos, silencia as diferenças e faz eco não com a supressão das opressões que nos dividem, mas com a manutenção delas.

E também concorrem para o silenciamento das complexas formas e processos que formam as experiências únicas das classes operárias nos mais diversos contextos e conjunturas, inclusive territoriais.

A classe operária britânica não foi formada como a brasileira, não teve a mesma experiência da escravidão criando uma complexidade de processos que incluíam um contingente imenso de trabalhadores colocados abaixo inclusive da classe trabalhadora, sendo desumanizados neste processo: os negros escravizados. Também não viveram a mesma experiência a classe trabalhadora estadunidense, que tem uma outra complexidade que forma as dinâmicas diferentes das relações étnico-raciais e a própria diversidade de formas de escravidão e de legislatura a respeito da escravidão nos mais diversos estados.

Ao contrário de ingleses e franceses, brasileiros e estadunidenses viveram parte da história com a ideia de serem humanos enquanto negros e índios não eram, eram animais ou assemelhados, não possuíam a identidade que faziam com que brancos e negros não fossem parte de uma mesma classe, sequer fazendo parte da mesma espécie.

Essa construção cultural durou séculos e perdura dificultando a identidade entre brancos e negros como partes de uma mesma classe. O racismo aqui serve para dificultar a construção e conquista da consciência de classe.

A própria relação entre gêneros e a busca de direitos entre homens e mulheres, a relação com a presença da homossexualidade, tudo isso varia de acordo com as experiências históricas nos diferentes contextos históricos, geográficos, políticos e sociais.

A experiência LGBT e das mulheres sob o islã atravessa a própria dinâmica da construção de um debate a respeito de classes.

As grandes narrativas produziam ferramentas teóricas fundamentais para a compreensão do mundo, mas também a partir delas foram produzidas outras contribuições que dão conta da maior complexidade da percepção do real. Inclusive a própria ideia do real.

As novas sociedades, mais e mais complexas, ainda funcionam em uma percepção macro, de acordo com as grandes narrativas, mas elas possuem limites que não alcançam fenômenos como o bolsonarismo e a resistência a ele.

Apesar das semelhanças entre bolsonarismo e fascismo clássico dos anos 1930, ou mesmo com Trump ou Erdogan, as diferenças explicam o fenômeno de forma mais explícita, diz mais sobre nossa sociedade e alimenta mais nossas táticas de resistência.

Isso não significa que Bolsonaro, Trump ou Erdogan não sejam neofascistas, mas exatamente por isso precisam ser diferenciados do fascismo clássico e suas estruturas.

O caldo cultural que Trump construiu em sue fascismo de novo tipo uniu inimigos “naturais” como Ku Klux Klan, neonazistas e supremacistas brancos.

Bolsonaro uniu em torno de si estatistas amantes da ditadura, neoliberais sem escrúpulos, neonazistas e amantes da milícia, o que os une é apenas o ódio a quem resiste à opressão e à democracia.

Esse fascismo de novo tipo se relaciona com a maior complexidade de identificação do próprio indivíduo enquanto uno, ou seja, o indivíduo que se pretende organizado em uma ideia simples de ser humano, e confronta as dinâmicas de negros, índios, mulheres, LGBT e trans, se enxerga não como um portador de uma identidade brasileira una, mas como um contrário às bandeiras que fragmentam, sob sua ótica, a nação, a ideia de homem e mulher, a ideia de Deus, etc. Com isso ele se une aos que resistem às mesmas coisas que ele, não por uma identidade em comum, mas por uma contrariedade em comum.

O indivíduo do fascismo de novo tipo é tão fragmentado quanto o indivíduo que luta contra o racismo, a homofobia e a misoginia. Ele também é um branco, pobre, muitas vezes LGBT e morador da mesma periferia do negro, pobre, também LGBT e antimachista, mas sua contrariedade ao que rompe com a grande narrativa da “normalidade” o faz optar por uma união com quem tem pensamentos radicais contra sua ideia de nação, mas que comunga com ele contra a ideia de desfazimento desta normalidade.

A “normalidade” é seu valor e ele a defenderá se aliando a todos os que querem combater os” vermelhos”, categoria inventada para dar a entender que há um simplismo que faz o combate entre diferenças enormes ser um simples “nós contra eles”.

Essa percepção da fragmentação do indivíduo, tudo o que isso envolve não vem de uma “pós-modernidade’ que é o espantalho teórico de parte da esquerda, mas de investigações da esquerda britânica, alemã, estadunidense e francesa e tem uma profunda raiz no marxismo, assim como é de Marx que parte a ideia de experiência como fundamental para a consciência de classe e das diferentes formações da classe operária, debate que faz parte da ideia das opressões serem elemento fundamental para dividir a classe.

As grandes narrativas não tiveram seu debacle apenas a partir de espantalhos teóricos, elas forma percebidas como portadores de incorreções quando expostas a realidades complexas e às novas conjunturas de avanço do capital e da ampliação absurda da complexidade das organizações sociais sob o eternamente transformado capital.

Novas famílias geraram novas homofobias e misoginias, ascensão de classe para negros originaram novos racismos.

A própria ideia de uma divisão de classes binária ou dividida em ricos, remediados e pobres tem problemas de se manter em pé a partir das diferenças entre os ricos, as classes médias e as diferentes classes operárias.

O operário especializado da Volkswagen não é a mesma coisa do operador de telemarketing.

São muitas as questões a serem postas e tornariam este texto longo demais, mas a ideia de que precisamos debater nossas bases teóricas as respeito das grandes narrativas precisa ser encaminhada e organizada.

Porque é parte deste debate a construção de ferramentas de combates aos ataques que as classes trabalhadores sofrem das elites e de seus aliados no interior de cada classe.

O mito da pureza ideológica

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Ideologia é coisa séria.

Há quem pereça pelo mundo defendendo de forma tola que ideologia é aquilo contra o qual quem é consciente se rebela. Ou seja, o que o discurso diz é que ele, enquanto discurso, não é ideológico, apenas o outro o é.

Há quem dispute a ideologia que percebe melhor o real e dele dispõe para transformar ou conservar.

Há quem debata a ideologia como algo universal, que há em tudo e em todos.

Há quem defina ideologia como um falseamento da realidade que se faz presente na construção da hegemonia cultural de uma classe sobre outra a partir da naturalização de valores de uma classe opressora como se fossem universais ao todo. Essa é a definição marxista.

Eu particularmente entendo a ideologia como um apanhado de percepções do real e que pertence ao debate que ocorre na construção da consciência de classe.

Ideologia é uma forma de perceber o mundo.

Se buscarmos no Google a definição de ideologia é:

ideologia
substantivo feminino
1.
fil ciência proposta pelo filósofo francês Destutt de Tracy 1754-1836, que atribui a origem das ideias humanas às percepções sensoriais do mundo externo.
2.
p.ext. fil no marxismo, totalidade das formas de consciência social, o que abrange o sistema de ideias que legitima o poder econômico da classe dominante (ideologia burguesa) e o que expressa os interesses revolucionários da classe dominada (ideologia proletária ou socialista).
3.
p.ext. soc sistema de ideias sustentadas por um grupo social, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos.
“i. conservadora, cristã, nacionalista”
4.
p.ext. conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos.
“sua i. identifica-se com a dos republicanos”

Aqui de onde eu vejo a ideia da ideologia ser apenas um falseamento do real que serve à produção de hegemonia me parece ao mesmo tempo lógico e limitado.

Lógico porque sim, há esse elemento da produção de ideologia que serve a uma hegemonia de classe, e limitado porque no decorrer do tempo a percepção de Marx deu conta de apenas um aspecto do mundo cultural e das relações de força entre movimentos culturais relativos às classes.

Em resumo: Ideologias são produções de sentido sobre o real a partir de um viés político. Todas as classes o possuem e é isso que as dá em algum momento consciência de classe a partir da percepção ideológica, com matrizes diferenciadas, da realidade.

Todas as classes possuem suas ideologias e a relação entre elas produzem choques, entre eles os compreendidos por Marx como uma prática da ideologia em si, a partir da produção de uma dominação de percepções da cultura de cima pra baixo, no sentido da hegemonia cultural burguesa.

Só que Marx não enxergou o todo do movimento.

Dos Marxistas, foi Gramsci que talvez tenha inicialmente desenhado melhor  o restante do quadro.

Gramsci iniciou o entendimento que implicava perceber que há em todas as classes movimentos de percepção do real e de construção de sentido, inclusive político, para ele, e que inclusive a hegemonia cultural burguesa, ou de qualquer classe “superior”, era relida e reescrita através das apreensões populares, e que o processo de construção dessa percepção ideológica produzia circularidades de valores e ideias que inclusive influenciavam e transformavam a cultura das elites.

E essa percepção não é anti-marxista, pelo contrário, ela segue o desenvolvido por Marx e amplia o sentido do debate cultural por ele, dando outros sentidos por Gramsci, Bakhtin, Thompson,etc.

E por que recupero esse debate?

Porque há uma simplificação da percepção da ideologia por parte da militância que ignora o processo dela como parte do construto do real pela população e disputa uma percepção do real mais pura que a outra.

O cotidiano de lutas é menos entender ideologia como um fator de apreensão do real, com a busca de superação de suas opacidades e não de absorção de um falseamento da realidade, e mais uma tentativa de impor ao outro uma ideia do real que encaixe enquanto falseamento da consciência.

Inadvertidamente o cotidiano de embates ideológicos é briga de pombo sobre qual o grunhido que vence no processo de imposição de percepções. E isso é exatamente a definição de Marx para a ideologia.

O real em seu inteiro teor é imperceptível, percebemos individualmente frações dele no cotidiano, em conjunto temos fragmentos do real que compõem um mosaico verossímil do real, mas o conjunto da experiências individuais que se organizam em grupos sociais, partidos, coletivos ou classes, ainda é uma percepção compartilhada de um real opaco, deduzido, incapaz de ser apreendido.

A consciência de classe nasce quando esse conjunto de apreensões de um real opaco se organize em uníssono, estabelece pontes empáticas entre indivíduos que se percebem mais unidos em experiências e sentimentos do que afastados.

Essa compreensão não se dá num uníssono ideológico, pois cada fragmento do real é lido com configurações diferentes das ferramentas de leitura dele.

Essa compreensão, essa consciência, se dá numa polifonia ideológica, numa polifonia de percepções do cotidiano, de visões de ângulos diferentes de processos reais.

A convicção de uma percepção não estabelece tábula rasa de todas as demais.

E é por isso que a pureza ideológica é um mito.

A anarquia explica e discute um determinado aspecto da relação entre coletivos e indivíduos e o estado e a sociedade, o socialismo, o ecossocialismo, o comunismo, o liberalismo, o stalinismo e o  fascismo outros aspectos.

Inadvertidamente todas as formas de percepções do real compreendem e apreendem valores factíveis da opacidade do real, traduzem uma percepção válida da realidade enquanto elemento observável.

O caminho que seguimos e que optamos seguir para as transformações deste real é que nos diferem ideologicamente e politicamente.

Nosso problema com o fascismo não é que ele não enxerga o real, é que ele enxerga uma faceta do real que desejamos transformar e evitar que se produza enquanto cotidiano.

Idem com o Stalinismo.

A diferença da percepção anarquista da realidade e da ecossocialista é com relação à opção de participação no estado e em relação às organizações hierárquicas.

As leituras de cada grupamento não são um falseamento da realidade que algum tipo de treinamento pode suplantar ou “curar’.

A própria concepção de que há uma forma de enxergar o real que supera todas as outras é extremamente autoritária.

A ideia de que há um tipo de realidade que se acredita e que se busca construir ao contrário, permite um diálogo entre percepções que aprofunda a ideia da consciência de classe enquanto elemento de construção empática de caminhos comuns para a transformação do real.

Aliás, esse é um dos principais eixos que nos diferem dos fascistas: A nossa consciência de classe é empática, se busca unidade não de uma percepção do real, mas de reconhecimento entre nós de vidas, sentimentos e situações de vida em comum.

Nossa percepção inclui o outro, a deles exclui o outro.

É na alteridade que defendemos que está a unidade necessária para as transformações.

Ser anarquista, comunista, socialista ou ecossocialista nos diferencia em muita coisa,mas bem menos do que o conjunto de valores que defendemos e construímos como valores de percepção empática e de consciência do real enquanto uma unidade de percepções que incluem a alteridade.

Sem empatia somos nada, sem empatia o fascismo é tudo.

E por isso a ideia de uma ideologia pura, de uma percepção do real que a tudo explica e que a todos abrange e quem não a segue é tolo ou inimigo é, fatalmente, um combustível pra alimentar o caudal de ódio que o fascismo adora.

A própria ideia de que o pensar do outro é uma traição é o contrário da produção de consciência coletiva pela empatia.

Claro que há traições, que há opções pelo empoderamento de inimigos na luta pelo chão, mas esse processo mesquinho do cotidiano é apenas uma faceta do cotidiano de lutas e de valores que compartilhamos.

Anarquistas, liberais, comunistas, socialistas e ecossocialistas foram solidários entre si com a morte da Marielle e com o atentado a Lula, com todas as críticas que permanecemos tendo entre nós, e que não impede o processo empático de unidade na luta.

E é nesse compartilhamento de valores que precisamos fortalecer a apreensão do real e apercepção da distância entre opção ideológica para a luta política e sectarismo que infere que o diferente é cego ou tolo.

Senta que lá vem História! – Teoria, política e escola

Sobre não dar descanso a Temer, as diferenças, distinções e imobilidade eleitoreira

sinopse3

Quando Dilma sofreu o impeachment na câmara parte da esquerda partidária e de movimentos sociais declarou que não daria um segundo de paz a Temer.

Pois é, mas deu.

Deu inclusive mais que um segundo em paz, deu dias, semanas, meses.

Manifestações até ocorrem, mas pingadas, poucas e pouco representativas.

Ações, como as que ocuparam o MinC, foram pouquíssimas e pararam há semanas, mesmo obtendo vitórias diante deste governo apalermado, ilegítimo e fraco.

E o governo ilegítimo prossegue com suas ameaças asneiras não só à classe trabalhadora, mas à democracia, ao bom senso, ao futuro da produção científica e à educação laica e de qualidade.

Mas a esquerda partidária prossegue sem tirar a paz de Temer, a não ser que entenda que tirar a paz seja xingar muito no Twitter.

Nesse meio tempo a esquerda partidária redescobriu o PMDB vilão de desenho animado, mesmo que o PT, que se aliou ao PMDB feliz em 2010, tivesse se construído denunciando o PMDB coo parte da direita coronelista brasileira desde seu nascimento nos anos 1980.

Todo santo dia parte dessa esquerda chora lágrimas de esguicho porque Cunha, Temer, etc são “ladrões” e “golpistas”, chega a ser meigo, doce e dramático, mas tem a função social do furúnculo na bunda como processo civilizador, com a devida vênia pela utilização terminológica.

Enquanto isso se não fosse índios, padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazendo o carnaval à revelia da política institucional poderíamos dizer que a esquerda morreu enforcada nas tripas do último burocrata.

Sim, não há esquerda nas ruas, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.

Tá, vá lá. Não sejamos injustos!
Profissionais estão em greve em vários estados, especialmente professores, e especialmente no Rio e RS, mas a vida da esquerda é mais que greve, por enorme importância que elas tenham.

E a vida política das greves é mais que elas mesmas e suas categorias.

Nem às greves o apoio coletivo da esquerda, o enorme peso necessário pra disputa hegemônica e contra hegemônica das consciências, a gente vê com a ênfase necessária.

Greve Geral? Sonha!

Vemos sim a esquerda tartamudear lamentos grandiloquentes sobre a maldade do mundo contemporâneo gritando o inócuo e babaquara grito “Primeiramente Fora Temer”.

Como se essa fraseologia amestrada fosse um abracadabra da libertação dos cães capetóides da revolução pra cima da direita, que ri, de lacrimejar na gravata, dessa bobagem.

A esquerda partidária definitivamente abraçou a teleologia da revolução enquanto evento escatológico e apocalíptico.

Sua religiosidade “racional”, seus mantras, signos, sinais, santos e demônios travestido de figuras públicas e burguesia, e segue na procissão candente dos ignaros rumo ao nada.

Tem avanço fascista que mata alunos da UFRJ, amplia crimes de ódio, ameaça professores, ganha DCEs, apoia bolsonaros, etc?

Lutaremos contra isso, mas vamos tentar canonizar nosso santo da vez elegendo-o prefeito primeiro?

E às diferenças e distinções entre nós da esquerda, como são tratadas? Com a velha e boa desqualificação dos que não são convertidos à fé dos mosteiros vermelhos de São Lênin, São Marx, São Trotski e Reverendo Stálin, na borrachada.

A nova é o racha do PSTU provocando grandiloquentes debates sobre a razão ou desrazão de gente adulto optar por tomar outro caminho organizativo.
Como se isso fosse sequer da conta coletiva ou elemento fundamental de qualquer mudança dramática na conjuntura ou tivesse efeito daninho à organização política coletiva.

Sim, a esquerda partidária ainda se ressente de gente adulta definindo que não quer mais fazer parte de grupo A e se deslocando pra fazer parte de grupo B ou vender sua arte na praia.

Como se o cara ao migrar sua militância pra anarquia ou sair do partido A pra fundar outro ou ir pro B, ou mudando seu nome pra Chupeta de Baleia e fazer performances acrobáticas na praça XV mudasse um cacete de elemento prático na conjuntura e tornasse a vida coletiva mais ou menos dura no enfrentamento político contra a direita.

Mas reparem que a cada racha ou a cada crítica soltam-se as balalaicas argumentativas dos xóvens do mosteiro vermelho falando da necessidade de “um partido da classe”.

Vejam bem, não falam da necessidade da classe trabalhadora se organizar ao máximo, mas dela ter “um partido”, reparem no numeral “um”, isso mesmo, apenas um, unzinho.

E as diferenças, as dissonâncias, a diversidade, as distinções? Fodam-se elas, só pode existir um.

Tá certo que parte boa da esquerda de hoje cresceu com Highlander no imaginário, mas desde os anos 1960 ao menos temos elementos teóricos pra discutir essa obsessão pela uniformidade na esquerda que dão um novo gás à nossa própria percepção do mundo e rediscutem a obsessão marxista-leninista pelo partido único, centralizadaço, supostamente democrático, não?

A diversidade, as distinções, as diferenças produzem mais diversidade, mais distinções e mais diferenças, e isso tá longe de ser negativo diante da óbvia complexidade da composição da realidade e das classes operárias, dos mundos e fundos que são feitos de gente que luta, se organiza, sobrevive, produz suas próprias pautas e lutas.

E o que isso tem a ver com dar descanso a Temer?

Tudo.

Até porque enquanto a esquerda partidária ignora o mundo externo a ela e o aumento dos crimes de ódio, da sanha bolsonarísta de se impor na porrada sobre mulheres, negros, LGBT, a coletividade transformadora da esquerda não partidária tá por ai enfrentando essa direita sem precisar gritar “Primeiramente Fora Temer”.

E segue a esquerda ignorando essas lutas, tratando-as como “problematização que desvia o foco da luta de classes”, atacando mulheres, atacando indígenas, atacando LGBT que gritam, em grandiloquente razão, sua fome de mudanças e conseguem cercear a direita, emparedar a direita, tornar a vida da direita um inferno enquanto a esquerda partidária agenda uma nova apresentação do Papai Noel de Montevidéu numa tour inútil de louvação tosca a figuras públicas burocratizadas, mas pop.

Ou isso ou lendo um Stalinista pop como Zizek falar bobagens reaças, mas de esquerda, enquanto Temer agenda matar a CLT a pauladas.

Vão esperar perder direitos pra agir? Não é a lição que secundaristas, índios, LGBT e mulheres estão dando.

Mas uma esquerda que ainda acha que só há um caminho pra transformação, e portanto um tipo de conhecimento supostamente racional e organizado pra compreender a realidade, consegue aprender algo que fuja do adestramento?

Difícil.

Da diversidade da subversão e do ethos transformador

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Primeiramente #Molotov .

Os caminhos ideológicos da esquerda traduzem as contradições próprias do campo contra hegemônico a partir de sua miríade de campos dentro e fora do marxismo tradicional.

Quando coloco campo contra hegemônico é proposital pra fugir da terminologia “Progressista” onde são encaixados uma outra miríade de grupos que nem sempre são participantes de qualquer noção ética de transformação social ou ruptura ao status quo, entre eles liberais democratas, capitalistas desenvolvimentista de linha keynesiana, etc.

Por que os caminhos da esquerda hoje, tida como dispersa e fragmentada, traduzem as contradições inerentes a este campo contra hegemônico? Porque a esquerda jamais foi esse monólito vivo em torno do ideário marxista.

E isso se tornou mais eloquente pós-crise do estruturalismo decorrente dos efeitos da segunda guerra mundial e da racionalização do genocídio a partir do nazifascismo provocando uma crise na própria narrativa moderna da razão como libertadora e mãe do progresso.

Inclusive esse é mais um motivo pra crítica do uso do termo “progressista” para definir quem atua no campo contra-hegemônico, mais conhecido como esquerda. Porque a lógica moderna do progresso traduz uma percepção de avanço das forças produtivas que despenca na ideia do domínio antropocêntrico da Terra com desprezo absoluto ao meio ambiente, e também a um etnocentrismo que põe na frente a concepção moderna do progresso industrial e científico branco ocidental como medida de todas as coisas e culturas.

Dessa crise “da razão” emergiram muitas formas novas de transformação contra-hegemônica, mas também ressurgiram formas antigas e que estavam em campo desde muito tempo antes, como a própria ideia de anarquia que por muitos anos foi submersa pelo marxismo-leninismo, nem sempre apenas com a hegemonia ideológica e cultural, mas com violência (vide 1936 na Espanha).

Além do ressurgimento de campos ideológicos antigos como a anarquia e o autonomismo, surgem novas formas de debate contra-hegemônico como as que nascem a partir do feminismo e da luta LGBT, como a teoria Queer; A própria ideia de organização política dos povos originários, com seus paradigmas teóricos próprios que compreendem o mundo, a sociedade e as formas de transformação para além do que as teorias ocidentais propõe, mesmo que dialoguem com elas em algum momento; As construções ideológicas das populações africanas e do Oriente médio e Ásia a partir do caudal cultural e teórico produzido na descolonização, com ações que incluem o pan-africanismo e o marxismo, mas também releituras de ambos e transformações que traduzem valores próprios como a filosofia Ubuntu.

Para além disso as teorias produzidas na História, Filosofia e nas Ciências sociais apontam para novas saídas teóricas passíveis de serem utilizadas, como de fato o foram, por movimentos.

Pensadores como Ginzburg, Foucault, Thompsom, etc, fogem dos paradigmas centrais ao marxismo-leninismo e apontam para novas interpretações possíveis da vida humana e das organizações sociais que não eram contempladas quando Marx produziu suas teorias no século XIX ou quando Lênin se organizou misturando a teoria marxista a uma percepção fordista da política. Ou se eram contempladas o eram de forma absolutamente embrionária.

Se já haviam esses movimentos nos anos 1920 ou 1930, com críticos como Walter Benjamin tanto trabalhando com a crítica à construção marxista-leninista como mecânica quanto apontando o progresso, e a própria noção de História como irmã do progresso, como um processo de inevitável libertação da humanidade a partir do desenvolvimento técnico, como se a sociedade e a tecnologia fatalmente se abraçassem um dia numa era de ouro do humano, eles triplicaram em participação, peso e vivência no pós-segunda guerra e produziram tantas transformações quanto possível na própria ética da transformação no campo contra-hegemônico.

E desde os anos 1960 em especial esses movimentos e caminhos se tornaram cada vez mais diversificados e mais contundentes na ampla raiz de uma crítica complexa, completa e permanente de todos por todos e da própria ideia de transformação social.

E o que isso nos mostra? Nos mostra muitas possibilidades de análise e entre elas está desde a própria percepção das transformações como parte fundamental para o avanço das ideologias de transformação, com resultados práticos, até a própria reação de parte da esquerda outrora absolutamente hegemônica a esta diversidade e à própria crise de estabelecimento de sua ideia de unidade como hegemônica entre o diversificado plano de consciência dos movimentos de transformação.

Além disso, esse confronto entre a miríade de movimentos de transformações e os outrora campos hegemônicos do ideário de transformação põe também em confronto a própria ética da transformação, ou seja, o ethos que permite a compreensão da moral deles (Dos opressores) e da nossa (quem busca as transformações).

Não é incomum que nos embates e nas lutas pela representação do ideário da transformação o amplo espectro da ética inerente aos mais diversos movimentos seja mandado pro espaço em nome da punição daquele que disputa com o outro o papel de representante da transformação social e política (Seja ela a revolução, a anarquia, a igualdade de gêneros ou o fim do racismo ou tudo isso junto). Não é incomum as acusações mútuas entre os campos de serem traidores de uma causa em especial ou de uma bandeira ou de um campo de significados que simbolizam a revolução. E não é incomum todos estarem certos.

A diversidade da subversão por vezes é tomada como panaceia ou como veneno, quando não é nem um nem outro e sequer deveria também significar diversidade do ethos transformador.

A diversidade da subversão é um fenômeno histórico que traduz uma nova percepção do real como multifacetado e intraduzível de forma única pelas mais diversas ciências e teorias (incluídas ai as ditas exatas), algo que se não é consenso é cada vez mais perceptível nos debates ocorridos no interior das ciências humanas, e não só.

A diversidade no ethos transformador é que é um problema e dos grandes.

Porque a diversidade da subversão é filha dileta da expansão das formas de luta e dos campos de embate contra a opressão, que produzem amplos espectros de vitórias e de exposição das forças conservadores e do Estado a uma miríade de táticas e demandas que não os permitem muitas saídas simplificadoras.

Prendem anarquistas? Autonomistas atuam. Prendem comunistas? Grupos feministas estão nas ruas. Universitários reprimidos? Secundaristas ocupam escolas.

Entre todos esses existem comunistas ortodoxos e não ortodoxos, autonomistas tradicionais e novos, black blocks, feministas interseccionais e radfem, movimento negro unificado ou que inclui brancos, movimento indígena com raízes partidárias e autonomistas, entre todos existem foucaultianos, confederalistas libertários, anarquistas, autonomistas, malucos, etc.

E todos participam da enorme tarefa de transformação do mundo com o estabelecimento de uma polifonia onde vários mundos acabam se tocando e dialogando, na marra.

Isso é o estado da arte da diversidade teórica e da liberdade de ação política conquistada pela contestação, dentro e fora da academia, e que permite de tudo um pouco nas ruas, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.

Essa diversidade teórica e liberdade de ação política nasce da própria crítica às amarras teóricas e políticas produzidas no campo contra-hegemônico pela ascensão do marxismo-leninismo como resposta única a todas as questões produzidas no espectro contra-hegemônico que contemplassem as transformações necessárias nas sociedades contra toda forma de opressão.

Essas amarras nasceram e cresceram desde a ascensão de Lênin ao poder na URSS com silenciamento de todas as contradições internas e externas aos bolcheviques, muitas vezes com uso do exército vermelho de Trotski, e viraram um Leviatã sob Stálin e com o crescimento do peso geopolítico da URSS e seu controle sobre os partidos comunistas mundo afora.

Não à toa dois dos momentos de explosão da miríade de movimentos e concepções de luta nascem na e da explosão teórica pós-1960, período onde também ocorre o primeiro rompimento coletivo com o Stalinismo partindo da própria URSS e tendo reflexos na saída da China do estado de parte do Komintern, e após a queda da URSS nos anos 1990.

O resultado das reações à diversidade teórica e liberdade de ação política pós-1960 vem sendo, primeiro pelos PCs e agora pelos partidos da esquerda tradicional (em geral trotkistas) mundo afora, bem similares: Descrédito a tudo o que foge da ideia de “unidade”, que no fundo é busca de uniformidade; desqualificação das teorias contra hegemônicas não partidárias como “pós-modernas” , mesmo que a maioria ainda compartilhe de boa parte dos paradigmas da modernidade e o pior dos casos, o desvio ético que contempla o abandono do ethos da transformação em nome da garantia de espaços de poder, em geral burocráticos, que permitam o confronto com vantagens operacionais contra as mobilizações diversificadas, ou mais gerais e autônomas. Essas vantagens nos confrontos incluem uso do aparato policial de governos, processos judiciais e sim, tem muito a ver com a concepção fordista e até militarizada (Trotski defendia inclusive a ideia de militarização de sindicatos na revolução russa) de movimentos sociais e organizações políticas.

E ai é que está parte do problema do rompimento com o ethos transformador.

Porque o ethos transformador inclui na práxis cotidiana a ideias de reprodução ética de valores aos quais se deseja espalhar para toda a sociedade, ou seja, não adianta defender igualdade de direitos entre gêneros e etnia e incorrer em racismo ou machismo.

Não adianta ser contra transfobia e ser transfóbico, homofóbico, etc. Não adianta querer a liberdade da sociedade via revolução e encarcerar quem diverge de você, ou desejar que alguém morra de forma brutal por ser seu adversário, mesmo ele sendo um torturador ou defensor de torturadores.

A diversidade de meios de luta contra hegemônica é positiva, a flexibilização ética do ethos transformador não.

Há uma bela diferença entre pacifismo e contraposição à barbárie com barbárie.

Precisamos manter a lógica de ampliar a diversidade de percepções, interações, construções contra hegemônicas, a diversidade não nos enfraquece, fortalece e “pira” o poder.

Se nesse meio tempo essa diversidade também enfraquece as forças políticas organizadas em torno das burocracias, paciência e problemas deles.

Enfrentemos os resultados disso, pensemos e construamos a resistências à opressão com ou sem essas forças, com ou sem parlamentares, mas não esqueçamos da necessária manutenção do ethos transformador.

Parte da diferença entre nós e Bolsonaro é saber a nossa ética. Quem esqueceu ainda dá tempo de lembrar.

A própria ideia da catalogação ideológica em caixinhas determinantes e limitadoras é parte de um processo redutor do outro ao limite ideológico imposto. Por isso limites como “anarquistas não podem votar” ou “marxistas tem de ser centralistas democráticos” são parte da redução e da simplificação, que contém uma boa dose de autoritarismo.

O limite do pertencimento ao campo contra-hegemônico deveria ser menos doutrinário e mais ético, menos autoritário e mais libertário, menos redutor e mais amplificador e pode ser resumido na luta contra a opressão e contra o capital como porto seguro de todas as opressões a partir das opressões de classe.

Precisamos ir além do sistema e pensar pra fora dele. Ir além do voto, ir além das caixas, mas sem desgrudar de nossa ética fundamental: Não podemos ser como quem combatemos.

 

Do Impeachment ao stalinismo: A ampliação do silenciamento de mulheres, LGBT, Negros e índios

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O Brasil passa por milhares de problemas hoje.

Pós-impeachment de Dilma ele acrescentou a uma crise econômica gravíssima dentro de um contexto mundial, um nível de ruptura institucional complicadíssimo pra quem vive a luta institucional.

Acrescente a ampla descrença no sistema político brasileiro que vem em um crescendo ao menos desde 2013 um avanço de conservadores, amplifique com desconfiança tácita em todos os partidos, um judiciário ativista com flexibilidade ética, um governo interino ilegítimo e uma esquerda imobilizada, voilá, temos um caldeirão pronto pra requentar o caos.

Pra piorar o governo ilegítimo acha que o impeachment os legitima pra uma guinada de 180º na linha política já tímida do governo anterior em relação a direitos e a esquerda partidária pira na batatinha endossando o que o Governo Dilma e o PT mais querem: A irreflexão sobre os anos de concessões que pavimentaram o golpe transformada em apoio acrítico, recheado de pânico, ao Partido dos Trabalhadores como se um golpe fosse uma espécie de morte, que a tudo santifica.

É de um lado Alexandre de Moraes afirmando que usará a lei antiterrorismo pra meter a porrada em manifestante e quem criou a lei antiterrorismo e foi cúmplice de violência contra manifestante na copa e sócio do agronegócio no ataque a indígenas dizendo que são lados opostos, porque Dilma foi apenas péssima em DH, enquanto Temer é o horror.

Só que tudo fica mais pantanoso e até leviano quando nos pegamos lendo atitudes que envergonharia a esquerda se essa não tivesse perdido a noção de ética e do que é nossa moral em relação à da burguesia faz tempo, nessa marcha de naturalização do Stalinismo como se fosse pragmatismo e da secundarização de lutas como se fosse “foco na Luta de Classes”.

Bem, o PT e parte da esquerda partidária não satisfeitos em mimetizar a mídia corporativa para atacar Temer, como se precisasse, também está utilizando o momento crítico pra fazer uma caça às bruxas a toda a esquerda que atuava nos movimentos ampliando as pautas e exigindo mais direitos, especialmente os movimentos calo pro PT e governo como LGBT, Mulheres, Negros, Índios, Trans, etc.

Além do clássico “Não é hora de criticar o PT” temos agora o “Essa galera que problematizava turbante, essas ‘‘feminazis’’ são também participantes do golpe!” e variações da ladainha numa ressurreição do movimento de criminalização de ativistas produzido em 2013 que chegou ao ponto dos MAV do PT espalharem fotos fake de anarquistas empunhando bandeira nazista, foto manipulada por Photoshop que apagou o A anarquista e pôs a suástica.

Pra completar ninguém da esquerda partidária faz a mínima autocrítica sobre sua participação na criminalização de anarquistas e autonomistas feitas de 2013 pra cá, e não só, atua pra aparelhar as ocupações de escolas e transformar todo movimento de resistência a Temer em parte da “Frente Povo sem Medo”.

Se juntarmos o avanço de silenciadores secundarizadores de luta tentando silenciar mulheres e negros com o aparelhamento da indignação não é difícil entender o que temos pela frente: além da luta antifascista, que não recebe um pingo de ajuda dos partidos da ordem como PT, PSOL e PSTU, ainda temos um avanço de uma concepção stalinista de esquerda que é um avanço autoritário terrível para a esquerda.

E sim, esse momento contém mais perigos do que podemos imaginar. O avanço do Stalinismo dentro do campo das esquerdas naturaliza o autoritarismo como solução.

Some a contaminação autoritária da esquerda à ampliação do caudal autoritário na sociedade como um todo e o resultado não é exatamente cheiroso.

Se a esquerda é autoritária e a sociedade também é não há Chapolin Colorado que nos salve.

Em tempos onde escolas ocupadas sofrem ataques violentos de estudantes financiados pela direita para agredir quem as ocupa é perigosíssimo transformar quem deveria resistir a isso em espelho.

A complexidade dos problemas e da conjuntura exige mais do que uma reação dura aos ataques conservadores, ela exige uma reação qualitativa ao avanço do conservadorismo.

Não precisamos e nem podemos responder autoritarismo com flores, mas também não precisamos ou podemos responder ao conservadorismo com autoritarismo centralizador, silenciador e até misógino e racista.

É nessa hora que precisamos entender a diferença entre nós e eles. E ela não é só de um suposto lado que ocupamos e arbitrariamente definimos como se fossem uma manifestação binária maniqueísta.

A diferença entre nós e eles é também de valores, de busca de abolição de hierarquias, classes, fronteiras, opressões.

E não, isso não é sonhador, isso é identitário, estruturante.

Não podemos manipular manchetes pra desqualificar Temer, não precisamos disso, temos a defesa dos DH e a luta contra sua violação como tarefa, e isso já dá um enorme caldo pra batermos no governo ilegítimo.

Não, não precisamos sacanear movimentos autônomos ou a luta contra o silenciamento, debatedora do lugar de fala, e contra a apropriação cultural racista pra supostamente focar na luta de classes sufocando “desvios”, porque a luta anti racista e contra privilégios,misoginia, machismo e homofobia SÃO A LUTA DE CLASSES.

E também não precisamos fantasiar o governo Dilma pra chamar Temer de um horror.

Essa é inclusive a hora de E-XI-GIR do PT uma plataforma de real guinada à esquerda, uma reversão programática do que vinha fazendo, concretizando promessas jamais cumpridas, isso pra começar, e não para agirmos como esquerda domesticada pronta a servir o tutor do Campo da esquerda na hora em que ele precisa, mesmo sem merecer uma linha de confiança.

Precisamos inclusive entender que as fragilidades do governo Temer tem tudo pra miná-lo mais cedo do que a imprensa encantada com o governo reaça deseja e sequer percebe. E que essas fragilidades fatalmente porão de novo o PT no governo, ou ao fim de 180 dias ou em 2018,mas que recebendo endosso ao que foi Dilma baseado numa espécie de amnésia causada pelo pânico teremos a continuidade de governos terríveis pra DH, meio ambiente, indígenas, favelados, etc..

Não basta, portanto, resistir a Temer, derrubá-lo, precisamos também derrubar no PT o que levou Temer a ser presidente ilegítimo.

E não faremos isso com silenciamento e adesão acrítica, precisamos de mais e um bom começo é saber que nossa moral e a deles não é a mesma.

O que fazer no dia depois de amanhã?

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A esquerda vem sendo reativa há tempos, isolada em seus castelos, transformada em assessoria de gabinete de governos, movimentos organizados inclusive, desde muito tempo antes do PT assumir o poder em 2003.

Funcionou por muito tempo a relçação entre movimentos, partidos, governos e mandatos. Construiu caminhos através da burocracia, programas de governo e projetos de lei.

Só que enquanto se acostumava com a relação íntima com palácios a esquerda foi paulatinamente perdendoas ruas, e quando percebeu isso, especialmente em 2013, outras forças da própria esquerda e da direita começaram a ocupá-las. A saída pra governos e partidos vinculados à esquerda foi criminalizar quem ocupava as ruas, colocando todos no balaio do fascismo.

Isso esvaziou as ruas por um tempo até que a direita se reorganizou, amparada por governos explicitamente de direita, e voltou pras ruas, amparada por policiais que construiram publicamente a diferença entre “manifestante” e “militante”, o segundo, “comunista”, deveria ser reprimido, os demais não.

Atônita a esquerda partidária permaneceu longe das ruas. Aprisionada e processada, a esquerda não partidária também, embora atuasse fortemente nas ocupações de escola, manifestações por passe livre, etc, atuando em geral por vias menos ortodoxas, mais próximas às periferias e vinculadas a bandeiras mais práticas e cotidianas.

E cresceram os movimentos de direita, a classe média conservadora tomou gosto pelas manifestações sem política, sem repressão policial, com muita festa, anticomunismo, ódio racial, ódio a LGBTTS, feminismo e em especial ao comunismo. O fascismo começava a pôr a cabeça de fora.

A esquerda, aidna atônita, mas percebendo o perigo de impeachment saiu às ruas por um breve tempo, depois voltou a aguardar com a fé dos incansáveis, uma solução salvadora vinda das articulações palacianas de suas figuras públicas.

E não teve solução, não teve articulação que desse jeito, Dilma caiu, Temer assumiu com um ministério mais conservador que o de Collor.

Enquanto tudo isso acontecia várias manifestações antifascistas e ocupações de escolas ocorriam, com a esquerda partidária as ignorando ou tentando se apropriar delas pela via de UBES e UNE sem muito mais do que dezenas de estudantes ocupando o Parlamento, enqquanto nas escolas alunos auto-organizados tocavam o baile do ativismo que transforma, conseguindo em São Paulo uma CPI da Merenda e no Rio o fim do SAERJ (Prova de avaliação de “desempenho”). As ocupações horizontais permanecem em vários lugares, como em Goiás, Porto Alegre, Fortaleza.

E ai, e o resto da esquerda, o que faz no dia depois de amanhã do Impeachment de Dilma?

Bem, pouca coisa prática além de choramingar sobre o recuo conservador que é o Governo Temer e listar publicações internacionais criticando o impeachment de Dilma.]

Zero de análise, de auto-crítica, de propostas, zero de percepção de algo além do óbvio sobre o processo.

Parece que Temer, vice de Dilma, desceu de um disco voador vindo de Marte.

A esquerda petista lembrou outro dia que os índios existem e colocou que com Temer eles vão acabar. Bem, pode ser, inclusive Temer precisa apenas olhar como Dilma produziu parte do processo de extermínio indígena e repetir, nem precisa reinventar a roda.

Esse é parte do problema: Cadê ao menos o “Foi mal!” do PT sobre os recuos que empoderaram essa direita que o golpeou pra gente começar a conversar coletivamente sobre resistência? Não vai rolar? Não, não vai rolar, mas então, que tal ao menos propor caminhos de resistência além do Avaaz?

Não sei se vocês notaram, mas dizer o óbvio, que o ministério Temer é um horror, não o transforma no Coelhinho da Páscoa.

A ausência de mulheres e negros, a transferência da titulação de Quilombos pro MEC não é apenas um informe, é uma prática entrando em ação. Alexandre de Moraes na Justiça idem, significa que o pau vai comer.

E não, não adianta vir com aquele papo brabo de “Viram? Sem o PT é pior!”, porque senão a gente lçembra a responsabilidade do próprio PT com alianças à direita e empoderamento do mesmo PMDB dentro dos governos Dilma e Lula. Sim, sem o PT é pior, mas com o PT não estava bom e metade do ministério Temer também foi ministério Lula ou Dilma, de Henrique Meirelles a Henrique Eduardo Alves, Jucá, Kassab, etc. Melhor mudar de assunto, não?

Então, estão vendo as escolas? Estão vendo as manifestações antifas? Que tal baixarem a bola e a sbandeiras e colarem enquanto militantes pra apoiar, dar força sem tentar apropriar, aparelhar, transformar em palco eleitoreiro? Que tal se transformarem de novo naquela galera que não queimava na fogueira valores e bandeiras históricas pra construir o cadafalso que produziu o impeachment de Dilma?

E podemos avançar, há enormes mudanças no quadro teóprico prático da militância anarquista e socialista desde 1917, sabe? Tem as experiências do Curdistão libertário sírio, por exemplo, que dão caldo. E acho que se o Ocalan velho de guerra conseguiu produzir uma teoria libertária vindo de uma tradição leninista a gente consegue também, não?

Que tal a gente começar a discutir comitês de resistência? Não, dificilmente vai ter a adesãod e autonomistas e anarquistas, mas tem boa parte da esquerda que ainda ama votar e adoraria uma experiência organizada de forma horizontal, mesmo com o exemplo dado recentemente sobre o valor que a eltie política dá ao voto. Sabe o PODEMOS e o SYRIZA? Pois não nasceram cooptados pelo sistema e tem mais horizontalidade que a maior parte dos partidos brasileiros, mas muito mais que PSOL e PT.

Sei que RAIZ e REDE não são similares a PSOL e PT, embora o RAIZ esteja hoje em filiação solidárioa ao PSOL, mas são experiências de organização político partidária bastante mais horizontais e o quadro de recuo conservador não tá deixando barato quem fica pensando apenas no próprio umbigo.

Para além disso há contingentes autonomistas e anarquistas produzindo coisas novas, com resistência a tarifaços, aumento de energia, passagem, com luta por ocupação de imóveis, tem todo um trabalho educacional sendo feito. Tudo isso pode ser exemplo de funcionamento pra quem quiser transformar de novo o quadro político e construir saídas ao recuo conservador.

Ainda mais se analisarmos o quanto esse recuo que tenta atingir cotas, LGBT, mulheres, etc e também não aponta nenhuma saída econômica que vá funcionar em um quadro de crise econômica internacional, que tende a ampliar a recessão, além de pôr fogo no cabaré que é hoje o teatro político brasileiro.

Já tem ocupação do IPHAN, auditores do CGU bastante invocados, pra disso sair greve é dez reais, mesmo o Alexandre de Moraes achando que o Brasil é São Paulo e vai geral protegê-lo de mídia e de exposição.

E ai, que tal parar o mimimi e produzirmos o avanço na marra?

Da Razão como opressão: Sobre o etnocentrismo da razão pura, o casamento gay nos EUA e outras histórias.

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Sem possuir a pretensão de discutir aprofundadamente Kant e toda a tradição racionalista que permeou sua produção filosófica e aponta para o elogio da Razão enquanto ponto final “evolutivo”,mas já incorrendo nela, na pretensão, é fundamental nestes tempos de auge mecanicista de um marxismo sem Marx uma Crítica da Razão Pútrida.

Por que Crítica da Razão Pútrida? Porque em nome de um cientificismo de galinheiro,de um mecanicismo marxista baseado em “socialismo científico”, enrustindo inclusive a ideologia do cientificismo,da ciência como padrão de pensamento e todo etnocentrismo advindo disso, a rapaziadinha anda toda prosa na redução de todo pensamento não marxista, e/ou não científico, como sub lumpem do pensamento.

Aliás, não por acaso é comum também em parte deste “racionalismo” a secundarização das lutas, das diversidades de aspectos das lutas políticas, e também da luta de classes, baseado em perversões da lógica como a que reduz o impacto da legalização do “casamento gay” nos EUA baseado em sofismas que vão desde a caracterização desta conquista como menor por não ser panaceia até a caracterização do mar de pessoas comemorando a conquista como tolas por “Esquecer o imperialismo estadunidense” ou “Por que não comemoraram o casamento gay no Brasil?”,passando pelo inefável “Gays continuarão sendo agredidos e os EUA não se tornaram a Holanda!”.

O bacana disso tudo é o que os comentários enrustem. Tal como a caracterização dos EUA como o ator principal da conquista,ou seja , a conquista não é conquista porque rolou no Império opressor, apesar de ser uma conquista de oprimidos em plena pátria da teologia da prosperidade que serve de esteio teológico ao evangelismo de Malafaia e da direita Tea Party esteio ideológico da direita tupiniquim. Ou a ideia de que “Os EUA não viraram a Holanda”, como se a Holanda não fosse um belo celeiro da extrema direita europeia e tivesse sérios problemas para manter conquistas liberais como a legalização da maconha,direitos LGBT, etc..

Calma que tem mais!

Há também o argumento que a conquista é “modinha” e que não se comemorou com tanta ênfase conquista similar no Brasil, o que é falso ou o problema é que os caras tem amigos errados. Mas não para por ai, há também a ideia de que ocorrendo nos EUA, mesmo o país passando por uma radicalização de lutas pela esquerda(Dentro da divisão deles lá), muito mais acelerada a que aqui, com o governo Obama inclusive comprando pautas caras no campo dos direitos e da luta ambiental, a conquista não presta, pois é na Metrópole opressora. Ou seja raciocínio zero de conjuntura e dez em binarismo pseudo esquerdista,pois não elabora o que significa conquista trabalhista,ou de gênero,ou LGBT, ou racial, ou de desarmamento,num país como os EUA e o que isso significa no plano mundial.

Claro que tal raciocínio esconde a lógica de que se você comemora uma conquista de oprimidos nos EUA você automaticamente isenta os EUA de seu terrorismo de estado,de espionagem,de Guantânamo,etc.. O que, convenhamos, é de uma estupidez atroz.

E continua, porque antes este raciocínio tangencia a lógica de redução do saber indígena, quilombola, do pensamento mágico, das dinâmicas de reorganização da luta de classes, da dinâmica de refundação do pensamento político diante da crise ecológica,climática e civilizacional e da própria crítica ao elogio da Razão “Pura” como um elogio à forma pensamento ocidental sobre todas as outras, em resumo da crítica ao elogio da “Razão Pura” como um elogio etnocêntrico às formas de produção de pensamento ocidental como superiores às demais.

A razão, lida ainda com o esteio lógico estruturalista que foi dominante nos séculos XIX e XX, a tudo explica, a tudo revela e possui uma simples explicação estrutural pra tudo, o que foge dela é a ignorância e o obscurantismo.

O problema dessa lógica antes de mais nada é centrar na categoria Razão apenas a definição de razão conforme os cânones ocidentais, a forma de discurso ocidental,etc. A forma indígena de explicação para a crise climática não presta porque não tem nem forma, nem discurso nem o método analítico do pensamento ocidental,por exemplo. A ideia de que revolução precisa ser antes uma revolução cultural e conquistar corações e mentes também não presta se dita por Kropotkin,mesmo Gramsci seguir a mesma linha, usando a dialética marxista e o materialismo histórico, para definir formas de luta contra hegemônica também no âmbito da disputa ideológica (Ou seja, de pensamento), da mesma forma a luta LGBT, Indígena, Quilombola, Feminista, Transgênero é menor que a luta de classes, e jamais parte dela na cabeça de quem define a “Razão Pura” como acima de todas as coisas.

A razão estruturalizante vira um cânone que a tudo explica,tão similar à fé que até dói.

A merda é que nem toda estrutura cabe em todo lugar,mesmo atingido pelo capitalismo e não existe uma explicação pra tudo,existem muitas explicações pra tudo porque a realidade é extremamente mais complexa hoje do que era para Marx. Isso não diminui a genialidade de Marx, ou de Kant, e nem a serventia de sua metodologia e de sua produção teórica, só diz que só essa produção não explica tudo.

Isso é, pasmem, até marxista no ponto que discute que é preciso ler as variações da realidade, sua percepção concreta, antes de definir uma forma de ação e uma teoria para ela. O lance é que a bunda marxistas doutos em Marx que não são marxistas.

E há outros tantos meios e vieses de debate a respeito da centralidade da razão a partir da miríade de perspectivas culturais de leitura da realidade. A Antropologia, a História, a Micro-história tão aí produzindo teoria, desde o meio do século XX ao menos, que discutem a própria percepção “racional” e “científica” como uma leitura entre tantas leituras da realidade. E essa rapaziada não tava soltando peão ou “a serviço do imperialismo” ou brincando,sabe? Ajuda muito ao próprio marxismo lê-los e aprendê-los, apreendê-los.

Não quer ler algo de fora do Marxismo? Lê Thompsom, Foster, Tanuro.

Ah, é “pós-moderno” pra ti (não é)? Então larga mão e vai pescar porque teoria e pensamento não é tua área.

A questão é que enquanto produtor de pensamento “marxista” ao produzir teoria desta forma você reproduz opressão. Sim, opressão e reprodução do Status Quo, jamais revolução.

Até porque limitar a expansão de direitos,a ampliação da percepção do real e das vozes que o percebem é contrarrevolucionário,encaixotar o pensamento e as vozes dentro de paradigmas estanques idem, pois é limitar a expansão do pensamento à perseguição do Cânone.

É como procurar pela batida perfeita,mas sem batucar e chamar batuqueiro de “tribal”.

Por isso fizemos revolução na Alemanha

idiocracy

 

 

Em um debate recente após um companheiro postar uma comentário crítico de Rosa Luxemburgo à Lênin, uma pessoa desavisada das necessidades de um debate franco e teoricamente claro, criterioso e respeitoso, e também das necessidades de uso da teoria como ferramenta de análise do cotidiano e não só como ostentação, adorno, de projetos políticos pouco afeitos à reflexão soltou essa para ironizar a critica: Por isso fizemos a revolução na Alemanha.

E ai me veio a dúvida: Hum, então por isso somos todos Stalinistas? Se o critério for a lógica de corrida de cavalos e ignorarmos diferença conjuntural, estrutura do estado alemão com relação à monarquia russa, conjuntura dos dois estados e tudo o mais que pode ser elencado inclusive a presença do partido social democrata dividido entre spartaquistas e social democracia aburguesada, então beleza, Trotski e Lênin, os inquestionáveis, são superiores à Rosa no questionamento dela (A herege).

Mas e se consideramos que a critica de Rosa também serve como análise do que deu errado na Revolução Russa que gerou a URSS sob os coturnos de Stálin?

Se for por essa lógica como não fizemos revolução na Argentina então abandonemos oque escreveu Moreno? Podemos queimar os livros na Plaza de Maio? Pela mesma lógica toda a análise de socialistas Brasileiros, Franceses, Ingleses, tudo lixo, dado que não fizemos revolução em nenhum desses lugares, certo? 

Então não precisa ser gênio que ler a análise, corretíssima, da Rosa como um ataque às escrituras é tibieza.

Até porque metade mais um dos problemas da esquerda que se diz marxista é exatamente o não-marxismo nela, a negação do processo de análise dialética que Rosa coloca e que está em Marx pelo uso do que escreveram os “iluminados” de forma acrítica. 

Lênin então é usado quase de forma versicular, ignorando inclusive os giros dele e seus contextos.

Trotski é lido ignorando uma critica possível à sua atuação em Kronstandt e agora Rosa é desprezada porque não teve revolução na Alemanha?

Óbvio que também se ignora que Lênin e Trotski não acordaram de manhã e produziram a revolução, mas foram hábeis leitores do processo revolucionário que os cacifou como líderes, e que a consolidação do estado soviético em muitas leituras é vista também como um processo contra-revolucionário de esquerda, tendo em vista que produziu um estado que acabou dando em Stálin, certo?

Óbvio que sabem disso e que as críticas de Rosa a este processo ocorreu antes mesmos de ficar clara essa faceta,não?

Críticas como as de Emma Golldman (anátema, uma anarquista) não são bolinho e encontram eco em outros socialistas marxistas da época. Mas eu esqueci que anarquistas não podem criticar socialistas marxistas porque não foram tocados pela divindade de São Lênin.

De boa, se a lógica e debate é “Por isso fizemos revolução na Alemanha” vou pegar emprestado o que Caetano gritou em 1968: ‘Vocês são a juventude que matou hoje o velhinho inimigo que morreu ontem”.

Ah, eu reivindico sim Rosa Luxemburgo, como outros tantos pensadores socialistas marxistas. Até porque teoria não é porca, parafuso e engrenagem que só funciona em um tipo de mecânica, dá pra montar máquinas novas com uma mesma engrenagem de múltiplas aplicações.


A própria releitura de Marx como portador de um pensamento ecológico foi não só necessária como fundamental para criar-se um arcabouço de ferramentas que possibilitou uma reviravolta na esquerda mundial após a queda do muro de Berlim, onde foi possível abrir uma boa brecha para a recomposição do pensamento marxista em níveis anteriormente ignorados, inclusive recuperando terreno no movimento ambientalista, dominado por pensadores liberais, conservacionistas e manco de teoria capaz de fazer a crítica sistêmica.

Isso se tornou possível por Marxistas como Tanuro, Lowy e Foster recuperando em Marx um concepção de meio ambiente e um conceito como o da quebra metabólica para permitir toda uma releitura de Marx utilizando sua metodologia e avançando numa critica sistêmica que inclui leituras como as do Socialismo Realmente Existente, parceiro em danos ambientais do capitalismo clássico. 

Idem pra Rosa Luxemburgo que foi recuperada de um ostracismo fudido por conta de uma lógica metodológica excludente e avessa à democracia inclusive no âmbito dos debates teóricos e centrada em leituras ortodoxas de Trotski e Lênin, e hoje, pasmem, circula fácil entre ecossocialistas e faz parte, com Trotski, da construção do programa da Quarta no plano ambiental, onde se discute o planejamento democrático a partir referências em Rosa na crítica a Lênin pela estruturação do estado soviético e também em Trotski, a partir do programa de transição. 

Se ficássemos presos na ortodoxia fodeu, estaríamos todos de alguma forma que nem os embusteiros pagando de teóricos e leitores da teoria das redes sob o ponto de vista marxista, mas sendo só agazeiros teóricos que reproduzem frases inteiras de Lênin ignorando contexto e conjuntura, aplicabilidade dialética pra hoje,etc. 

Releu-se Marx e construiu-se saída pela esquerda e ninguém morreu.

Até a crítica à revolução russa (E crítica é análise) é fundamental para se entende porque deu no Stalinismo e em sua emulação produtivista do capital (Pra muitos outros hereges como Toni Cliff se tornando Capitalismo Burocrático de Estado) , e ignorar Rosa ai é miopia que beira à cegueira. 

Aliás, lendo Tanuro se pega parte das críticas de Rosa à Lênin como eixo da análise sobre os motivos da URSS não ser modelo nenhum diante dos danos ambientais produzidos e de todo o legado de autoritarismo, repressão e destruição ambiental deixado à frente. E não mata entender que parte do que Lênin e Trotski escreveram foi usado sim para construir um estado autoritário à feição do Koba,nem torna ninguém revisionista. 

Aliás, a própria postura diante do debate é exemplar e deixa muito claro que a critica que muitos comunistas fazem à própria esquerda tá plena de razão.

Há sim uma leitura religiosa das escrituras marxistas e, pasmem, isso tá em Benjamin também, visse?

E o Bellamy Foster dá outra dica: O afastamento do materialismo feito pro marxistas após a morte do Karl gerando no materialismo histórico um distanciamento da análise científica concreta, pode ter sido uma das raízes da construção de uma lógica de afastamento do concreto em nome de uma mitologia escatológica.

Por isso é preciso e fundamental ampliarmos a leitura da teoria não como uma lógica evangélica, mas como revolucionária ação teórica de transformação, senão viraremos um pastiche do marxismo.