A naturalização do estado é um processo arraigado e produzido pelo reforço na cultura e pela educação formal dele como elemento que sustenta a realidade social e que possui uma inevitabilidade, a inevitabilidade do estado e da nação.
Fruto da formação dos estados nacionais e do conceito de cidadania advindo das revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX, da invenção da tradição do estado como elemento inevitável à organização social, a naturalização das eleições, do voto e do estado é elemento que influi diretamente nos debates políticos, seja eles de cunho socialista, anarquista ou liberal.
A partir do momento em que o estado é algo dado, para além de sua existência factual, se elabora todo um processo estratégico de embate em torno das formas como que se lida com ele, seja pelo endosso para construção de ruptura, seja pelo endosso para reforma, seja pelo endosso pela manutenção, seja pela recusa do endosso pela negativa do voto e da participação nele.
O estado, visto como elemento natural da vida humana, é erigido como totem seja pela busca de seu uso para a transformação, seja por seu uso pela manutenção do status quo, seja pela criação dele como moinho de vento a ser removido.
E é nesta naturalização que repousa parte da redução do debate político em torno do estado e da aprovação ou negação do voto como ferramenta transformadora. O estado é discutido, combatido, é defendida sua reforma, mas ele jamais é abandonado ou se busca sua superação como paradigma.
O paradigma do estado naturalizado está intrínseco na percepção politica dos mais variados campos do embate político. Em qualquer cenário a importância do estado é endossada, inclusive por sua negação.
Especialmente nas eleições o estado domina mentes e corações ao tornar-se centro de todo e qualquer debate no âmbito político, de toda tarefa, secundarizando construções múltiplas de transformação social e humana, como a luta ambiental, por igualdade de gênero, por visibilidade trans*, por direitos civis LGBT, por igualdade racial. Tudo se torna secundário, a luta pelo ou contra o estado se torna central, jamais perpassando as ações transversais de sua superação ou transformação.
E especialmente entre anarquistas o estado se transforma em mais que um moinho de vento e espantalho perfeito, ele se torna presente na metodologia de debate e construção, que ao mesmo tempo que grita “Não vote, Lute!”, reforça as eleições como tarefa prioritária, criando uma centralidade das eleições com sinal invertido da dos partidos socialistas.
Tudo se torna uma ameaça paranoide à ideia de anarquia pelo simples fato de flexibilizar a centralidade das eleições e apontar a necessidade de desconstrução do voto como ferramenta a partir da desconstrução do paradigma da eficácia do estado e do papel central de seu endosso para a ótica política transformadora.
Ao centrar esforços na negação do voto pura e simples, sem construir um diálogo desconstrutor do papel estrutural do estado na cultura dos homens, os anarquistas acabam o endossando pela alteridade. Ao negarem-se a perceber o papel do estado como elemento naturalizado por séculos de construção ideológica pelas escolas, pelas igrejas, pelo trabalho, os anarquistas endossam o estado como figura central na vida humana. Não se avança na negação ao voto, mas não do eleitor, torna-se o eleitor como vaca braba tangida pelo estado e se assovia um mambo. Se age de forma autoritária excluindo qualquer reflexão que entenda a anarquia como um campo com enorme potencial de crescimento e que precisa prescindir do estado para sobreviver e se espalhar.
Quando negar o voto passa a ser central, o resto é secundário e o voto ganha um poder pela negação que não é enxergado, pois o estado, o voto, são naturalizados como parte integrante do cotidiano. Ao negar voto pura e simplesmente o anarquista torna-se endossador do voto, se dá a ele, às urnas, um poder que precisa ser eliminado pela negação.
Óbvio que não estou aqui dizendo que o voto não é importante, que não é importante a tarefa de negar o processo eleitoral como ferramenta, mas colocando que a negação do voto não pode prescindir da qualificação dessa negação como negação da servidão voluntária. E o não-voto não é central, ele é parte de um longo processo de lutas contra o estado e por auto-organização, que precisa ser centralizado como forma de propaganda político-ideológica.
Ou se nega o voto pura e simplesmente por que anarquista não vota? Se pergunta por que anarquista não vota? Ou se naturalizou o não voto como se naturalizou o estado?
O estado ai, na negação pura e simples do voto, permanece agindo, permanece agindo ao criar um anarquista de almanaque, imune às pressões cotidianas e avesso ao diálogo aberto sore sua negação do voto, do estado, do machismo, da homofobia e pautado pela construção da abolição da hierarquia. A negação do voto vira um fetiche ideológico, um totem tabu irremovível e inquestionável, em outras palavras, vira um nada libertário dogma.
Acaba-se negando-se o voto, mas trazendo-o como central pro espírito da anarquia e com ele trazendo o estado como central, o resto é secundário e acaba-se sendo o estado ao negar todo diálogo em torno do voto, mesmo que seja para negá-lo indo além dos facilitismos de chamar o eleitor de escravo, servo, etc. Opta-se, conscientemente, por uma metodologia de gueto, de manutenção ao redor do anarquista apenas dos puros.
Ai autores como Bookchin, ações como a dos anarquistas escoceses, canadenses e catalães que viam no plebiscito ou na participação pontual em eleições por anarquistas como ferramenta de intervenção, seja para a independência de um povo do jugo do imperialismo, seja pela participação em plebiscitos ou em conselhos como os de orçamento participativo, tudo isso vai pro lixo.
Nesse sectarismo o estado acaba sendo elemento predominante da prática política anarquista, não por negá-lo combatendo-o em saídas do estado, seja por ecovilas ou pelo anarco-sindicalismo ou okupas, mas por centrar-se na negação da institucionalidade pura e simplesmente.
A negação da institucionalidade acaba sendo ai uma opção pela luta institucional quase igual à opção dos partidos socialistas, só que com sinal contrário. Acaba-se fazendo da negação do voto opção estratégica e não tática, de forma idêntica ao que fazem partidos socialistas, só que pela negação do voto.
Ao fim e ao cabo não se combate o estado como se combate o machismo, a misoginia, a homofobia, o racismo, a transfobia, como estrutural, como um mal estrutural que deve ser desconstruído de dentro pra fora, indo além denegá-lo, mas deixando de reproduzi-lo.
Desta forma nega-se o estado pra fora, sem negá-lo pra dentro e assim o companheiro anarquista acaba sendo ele o estado. E ai ele é tão autoritário e hierárquico quando o que nega.
A busca pelo purismo ideológico, calando a diversidade e a polifonia, acaba sendo ai um elemento de hierarquização entre anarquistas que encontraram a iluminação libertária e anarquistas não plenamente convertidos. Não raro isso acaba sendo posto no plano do argumento de autoridade que incide sobre o outro com o argumento hierárquico do “Vai estudar!”.
Quando se comete essa hierarquização e política de gueto o anarquista nega mais do cerne da ideologia do que quem vota, pois atribui a si um guardião de uma pureza ideológica que nega a diversidade típica da ideologia anarquista e acaba sendo uma espécie de guardião de um conhecimento de sociedade secreta, um imitador de uma espécie de maçonaria ideológica.
E é sintomático que tendo o não-voto como cerne da política se ignore a misoginia, a homofobia, o machismo e o racismo praticado por companheiros anarquistas, que por seguirem a cartilha com correção recebem anuência por omissão de seus correligionários.
A eleição e o estado são naturalizados pela educação e pela cultura, para combatê-los é preciso mais que negar-lhes, é preciso sair do plano meramente utópico e partir para um diálogo prático da anarquia como fundamentalmente organizada a partir do hoje e onde o negar o estado é negar-lhe inclusive o domínio da ação política cotidiana, é negar-lhe a pauta política pela eleição.
Se anarquista não vota ele menos ainda se centra na campanha anti-voto, que é sim parte de um arcabouço de lutas que deve ser central na propaganda ideológica.
Quando o “Não vote, Lute!” não aponta as lutas a serem lutadas é uma palavra de ordem vazia.
Quando o anarquista aponta o eleitor como servo ele age como senhor iluminista catequizador e não como libertador.
Por isso não voto, luto contra combustíveis fósseis, contra a homofobia, contra a misoginia. Não voto e luto, sem negar o eleitor e o diálogo para que este vá além de votar, se organize na luta cotidiana.
A luta contra o estado e a eleição necessita de sua desconstrução inclusive em nós.
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