Pelotas, a UFPEL e o diabo que mora nos detalhes dos discursos

Desde que tenho memória, há nela alguma relação com universidades. Quando era criança pequena lá em Guadalupe, um pequeno longínquo bairro da mui leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, convivia com a vida universitária de meu pai, trabalhador da segurança pública que resolveu virar “dotô” aos quase quarenta anos. “Seu” Gilson se orgulhava muito de ter se tornado bacharel em direito pela UFRJ aos quarenta e um anos, mais do que ser Detetive-inspetor da polícia civil do Rio de Janeiro, e lidava com isso com o mesmo orgulho que eu lido hoje por ter a chance de ser um doutorando em história pela Universidade Federal de Pelotas. 

Porque nem a graduação dele, nem meu quase doutorado foram conquistados no kinder ovo, ainda mais sendo em uma universidade federal. Além disso, talvez nós cariocas tenhamos um defeito enorme de respeitar para caramba termos uma universidade federal em nossa cidade, o mais estranho é que os niteroienses também se orgulham de sua UFF, e os capixabas que conheci se orgulhavam de sua UFES ou os meus amigos mineiros de Belo Horizonte ou de Montes claros se orgulham de sua UFMG e UNIMONTES. Outras pessoas insanas são os porto-alegrenses e seu orgulho da UFRGS.

Já os pelotenses, os médios ou não, tem um problemaço com a UFPEL e eu desconfio que é porque ela representa a chance de quem se forma ou se torna mestre ou doutor por ela sair de Pelotas, mas isso é uma dedução advinda do ITdK, ou Instituto Tirei do Karma (é outro nome, mas proibido neste horário), a questão real é que há uma rejeição de discussão do papel da universidade na cidade, mesmo ela sendo central para vida econômica, social e cultural do município.

Qualquer debate em torno dos problemas da UFPel se transforma numa atrapalhação de planos que nunca são feitos, em qualquer partido, em qualquer lugar, o tom é quase sempre o mesmo. Praticamente só quem se importa com os rumos da UFPel são os discentes, docentes e servidores Técnico-administrativos em Educação,mesmo sendo um caso onde o orçamento da universidade tenha um peso gigante direto e indireto na sobrevivência desta ex rica cidade esquecida pelo Deus do desenvolvimento.

Com um orçamento de cerca de 70 milhões, a UFPEL está longe de ter o peso da UFRJ, a maior universidade do país e que em 2021 tinha um peso de 31 milhões mensais, gastos em serviços, salários,etc e que geraram uma circulação econômica para cidade do Rio considerável, mesmo sendo uma capital com orçamento bilionário, mas o impacto da UFPEL na economia de Pelotas é tão considerável que mexe com o mercado imobiliário e de consumo diretamente.

Em 2015, a UFPEL tinha  18,4 mil alunos e 2,6 mil servidores, fora os professores, e todos impactam a economia da cidade, consomem na cidade, gastam energia elétrica na cidade, pegam Uber ou ônibus na cidade, gastam gasolina, tomam seu cafezinho, ainda mais com uma população que gira em torno da universidade e que está perto de ser em torno de 1% da população total de Pelotas.

Falta aumentar a integração entre Universidade e o Município? Falta. Falta uma campanha para reitoria que pense nisso e uma campanha para prefeito que identifique isso? Falta, mas é estranho que os debates nos fóruns políticos de pelotas sejam feitos ignorando a contribuição da universidade e como os efeitos de seus rumos políticos interferem nos rumos políticos da cidade.

Os governos do PSDB e do PP que destroem a cidade não ocorrem por acaso, ocorrem pro uma cultura que nega a necessária construção de uma relação entre município e universidade como dois companheiros de uma viagem em que a população exige e necessita que uma harmonia e simbiose entre ambos forneça a produção de dias melhores para todos.

Desde convênios na saúde a projetos com a Engenharia, é enorme a quantidade de meios que outros estados e municípios deixam como exemplo para nós, especialmente a esquerda, e o que fazemos com isso?

A experiência como militante do PSOL e agora do PT em Pelotas não é auspiciosa. E em contato com companheiros de outros partidos de esquerda não é incomum ouvir a mesma coisa: a companheirada, e parte significativa da população, rejeita a universidade em seus discursos e falas.

Claro, o elitismo que cerca o meio universitário é refletido nessa relação, mas ele também existe nas universidades do país todo e a população tem uma relação com isso de forma diferente, sabendo diferenciar a tolice do elitista da necessidade de ter uma universidade.

Um caso clássico dessa relação de valorização pelo povo de suas universidades é a UERJ sendo respeitada e defendida por deputados de direita na ALERJ pelo eco negativo de suas impopulares tentativas de fechá-la, obrigando os nobres parlamentares miliciano-fascistas a arrumarem meios alternativos de destruí-la, como aparelhar a universidade em esquemas de corrupção.

O mesmo ocorre na USP ou na UNIFESP, ou na UFES, na UFC, mas em Pelotas não. O mesmo orgulho que perambula sorrisos quando um filho vira “bixo” some nos papos de boteco e cafeterias. Nos fóruns virtuais a virulência é maior, nos jornais a UFPel só entra quando assunto é polêmico. E nos debates partidários muitas vezes a UFPel é mencionada como um embate que atrapalha até a ausência de debates.

Não é pouco o problema, ainda mais quando se vê que em todo canto é prioritário para esquerda debater desde a participação ou não na UNE até as disputas da reitoria e DCE, em Pelotas não. 

A naturalização da desimportância de algo tão importante ou até de uma espécie de elefante na sala de um município que tem uma jóia, mas cisma em achar que não precisa dela, é um fenômeno raro para observadores mais atentos.

Diante de uma crise que envolve os três setores que compõe a universidade, ignorar o impacto político de cerca de 1% da população consumidora da cidade em pé de guerra por questões políticas internas da universidade, mas que também impacta internamente o campo da esquerda e pode gerar problemas em nosso confronto contra o fascismo, é tipo não tratar um câncer de pele porque acredita no uso de babosa.

É um caso clássico de negacionismo político e histórico, é como pregam os anti-racistas Morgan Freeman (Se não falar sobre algo ele desaparece), só que não adianta ignorar algo que é inerentemente impactante no dia a dia político da cidade e das cidades, e tem reflexo direto na forma como a juventude enxerga a política e os partidos políticos, em como a população percebe o cotidiano político e em como nós vamos lidar uns com os outros daqui a três meses, que é perto para caramba das eleições municipais.

Às vezes os discursos são apenas hipérboles ou slogans, mas às vezes eles significam a semeadura de desastres, e por vezes o que ninguém diz é uma forma eloquente de expressão.

Diante dos conflitos que estão acontecendo nas eleições para a reitoria, o que estamos realmente dizendo para a cidade, para a esquerda e para nós mesmos?

Não é uma pergunta para saber quem tem razão, mas uma pergunta para saber quem e o que vai sobreviver politicamente depois do processo.

Horresenha – Love: a história de Lisey

Quando comecei a ser um leitor voraz de Stephen King, pensei em ter as constantes experiências do horror que só o mestre da escrita do medo poderia nos fornecer. Obviamente não foi um julgamento precipitado, mesmo começando por sua produção clássica, escrita durante os anos 1970, e tendo choques posteriores com suas paulatinas mudanças de estilo e complexidade de escrita.

O Stephen King de “Carrie” ou “Christine”, não é o mesmo de “Rose Madder” e nenhum deles se parece com o King de “Love: a história de Lisey”, que dialoga muito mais com a trilogia Bill Hodges, com “Outsider” e especialmente com a coletânea “O Bazar dos sonhos ruins” do que com seu contemporâneo “Revival”.

Se em “Revival” King bebe na lagoa dos seus primórdios e homenageia seus antecessores, em especial Mary Shelley, em “Love”, King nos doa toda sua junção fantástica de horror, fantasia e sensibilidade com a maturidade de seu trabalho contemporâneo e com uma amorosa prosa que homenageia o ato da escrita, da mesma forma que ironiza seu engessamento pela academia e seu jogo de vaidades por vezes irresponsáveis.

Em “Love”, o mestre nos conta a história de Lisey e Scott Landon, um casal que compartilha um imenso amor acompanhado por mundos exóticos, criaturas mágicas,dídivas, sangue e loucos fãs ameaçadores e assassinos.

O pano de fundo dessa história de amor contempla variadas camadas de horror com um cuidado feroz em relatar a vida no Maine e da Pensilvânia, o aconchego caipira do sotaque e do modo de vida de cada cidade, de Derry a Castle Rock no Maine, passeando pela venda do Mulie  perto de Pittsburgh.

“Love” não é um livro que pede uma leitura esfomeada como “Outsider” ou “revival”, talvez por ser possivelmente o mais dramáticos dos horrores de King, e talvez não seja recomendado aos afoitos leitores mais jovens, cuja ideia de amor seja mais sexual do que a ligação que faz casais terem mesmo quando por vezes o sexo não é mais o  laço mais profundo entre eles.

Quando “Love” transita entre nosso mundo e Booy’a Moon, ele também navega por camadas de amor e de invenção,de imaginabilidade e sonho, de carinho, cuidado e escrita. 

A perspectiva da lagoa da invenção ( Ou da imaginação? Ou da criação? ou do sonho?) é um tremendo caminho que liga quem atua escrevendo com um livro sensível,delicado e que escreve sobre amor entre as pessoas e entre elas e livros e o ato de escrever, mas é também mais que uma metáfora, é uma declaração de amor à capacidade humana de produzir e de beber no mar da imaginação as criações que nascem brincadeiras e por vezes virma romances.

O livro não é perfeito, tem vários problemas de ritmo e não tem as melhores decisões na costura da parte de horror e fantasia com a necessária verossimilhança a respeito do mundo real e das ameaças nele constantes. 

O antagonista humano participa muito pouco para trama e a explicação sobre 

sua motivação tenha sido não apenas desnecessária, como didática demais, parecendo filme da Marvel que precisa explicar pro leitor toda a biografia do sujeito em vez de nos permitir entender o que já nos explicou Kevin Williamson com seu Bill Loomis em “Pânico”: às vezes não tem motivação nenhuma pro assassino.

A presença do Garoto Espichado de Scott tem o lado incrível da construção lovecraftiana, porém falha na mesma linha da presença de Jim Doole, passa uma ideia de que se adiou o confronto e as descobertas por páginas demais, e que quem precisava de mais descrição e presença teve menos doque deveria, e não estamos falando do caçacatra maluquete.

De todo modo, “Love” é um livro de Stephen King, um livro maduro e que faz uma fantástica ponte entre o amor e o horror e que se não está no topo do ranking de suas melhores obras, está longe do fiasco e nos entrega uma sensível descrição do amor e deu lado luminoso e seu contraponto sombrio que fazem com que relacionamentos sejam construtos que deixam legados firmes em nossa história.

Creeptica – Oferenda ao demônio (2023)

Critica | Oferenda ao Demônio - Plano Crítico

Quando Art decidiu voltar a encontrar seu pai Saul no Brooklin, levando sua esposa grávida Claire, escondendo um segredo que poderia por o reencontro a perder, mal sabia que o antagonismo de Helmich, antigo funcionário e amigo de seu pai, seria o menor de seus problemas.

 

Protagonizado por Nick Blood (Lance Hunter em Agents of S.H.I.E.L.D). Emily Wiseman (A Casa winchester) e com o luxuosíssimo auxílio de Paul Kaye (Game of Thrones), o longa usa e abusa dos clichês do gênero, mas com um respeito canônico que faz dele um filme especial para esse 2023 em que retomadas de clássicos se juntam com sequências legado, comédias de horror e pretendentes a “horror elevado” que pouco elevam a si mesmo e ao gênero.

 

Nick Blood faz um papel que merecia uma atuação melhor do protagonista, mas os coadjuvantes, que tem entre si o fantástico Allan Corduner (Yentl), seguraram a peteca em uma trama bem direta, sem muitos rodeios ou enredos herméticos nem plots twists sensacionais, um feijão com arroz bem temperado e que usa bem o som, o clima gótico desfilando na cenografia bem produzida e a perfeita noção que o cânone do horror no lega: o monstro não precisa aparecer para que tenhamos medo dele.

 

Claire é bem representada pela atriz Emily Wiseman, mas merecia um roteiro que não a fizesse cometer as velhas burradas que personagens de horror cismam em cometer.  O Helmish de Paul Kaye nos lega o melhor papel e a melhor atuação do filme. O ator que é mais conhecido por Thoros de Myr  de Game of Thrones e pelo histórico e ácido Dennis Pennis apresentador/entrevistador punk da Tv inglesa dos anos 1980/1990, entrega tudo em um coadjuvante central para trama e responsável pelo bom tom dramático de pedaços importantes do filme.

 

A trama se centra no retorno de Art ao Brooklin para visitar seu pai Saul, agente funerário judeu hassídico, e apresentar sua esposa, que está grávida de sua primeira filha. Nick esconde um segredo que o porá em confronto com Helmish, que já tem com ele uma rivalidade de anos. Logo nas primeiras horas , Saul recebe o corpo de Yosille, sábio teólogo que se tornou recluso após a morte de sua esposa. 

 

Saul e Helmish se preparam para tratar do corpo segundo os costumes judaicos, mas são interrompidos e precisam resolver outros problemas e deixam com Art a tarefa de iniciar os procedimentos. Art remove a faca que estava cravada no cadáver e retira um pingente, que cai da sua mão e tem uma quebra. Com medo Art joga o pingente no ralo da sala de preparo, mal sabendo que a faca e o objeto erma um selo que prendia no corpo um antigo demônio.

 

Oliver Park entrega um filme redondo em seu primeiro longa e faz bonito na direção, segurando o filme até nos momentos em que os atores ou os parcos recursos não entregam o estado da arte em atuação e efeitos especiais. A cena em que Paul Kaye canta no velório de Saul é sensacional, e ajuda demais para entrega do clima de tensão crescente que a junção do drama do luto com o horror em si da infestação demoníaca na casa de Saul.

 

O destino de Chayim, um teólogo hassídico, é uma quebra de expectativas brilhante, invertendo a lógica do grande sábio que vem orientar os pobres perdidos diante do inevitável horror do sobrenatural. O destino do teólogo inclusive é cantado já na sua primeira participação, quando com um misto de rigor teórico e ceticismo ele acalma Saul quando o velho vê inscrições na faca retirada do corpo e intui que tem coelho naquele mato.

 

“Oferenda ao demônio” não é o melhor filme de horror que você verá na sua vida, mas entrega muito mais do que a média e faz desse bom filme um bom candidato a clássico no futuro, assim como outras produçẽos do passado que nem sempre estiveram em sua época como clássicos e que hoje o são, como The Changeling.

 

“Oferenda ao demônio” está na Prime Vídeo.

Horresenha – A balada do Black Tom – Victor Lavalle (2018)

Livro - A Balada Do Black Tom - Victor Lavalle - Morrobranco - Seminovo

Quando lemos H.P. Lovecraft temos contato com o melhor e com o pior do talento literário, porque ao mesmo tempo que o celebrado autor é um dos maiores escritores de ficção de horror da história, também é um dos maiores racistas, misóginos e xenofóbicos autores da história da literatura.

Tanto o talento  quanto os horrores ofensivos que saem da pena do autor de Providence, Rhode Island, são explícitos em cada linha de sua obra, embora ele tenha sido enfático em sua produção teórica sobre  horror que o gênero exige que não se mostre a origem do medo.

Só que Lovecraft é explícito em seu ódio ao outro, e é o outro o personagem principal de suas obras que praticamente são sinônimas de Horror Cósmico. E seu ódio ao outro é maior ainda se o outro é preto, indígena, asiático ou latino americano.

Lovecraft é o autor que melhor explicita a perspectiva supremacista branca da produção imagética sobre estrangeiros e não brancos que bell hooks tão bem analisa em sua obra.

Em seu conto “O horror em Red Hook”, Lovecraft produz uma de suas mais importantes obras de horror,  e desfila neste meio tempo o mais abjeto racismo e xenofobia possíveis. Inclusive insinua que tudo o que o  branco milionário Robert Suydam faz é fruto da “contaminação” por bárbaros que usam mecanismos de ciências “malditas” antigas, e o policial Malone, o herói de Lovecraft, é alvo e vítima das vilanias do mago e seus asseclas não brancos.

Este poderia ser um texto sobre como sobreviver aos horrores que Lovecraft escreve em seu magnífico conto, aproveitando de sua qualidade inestimável, mas  aqui escrevemos  para louvar a talentosa e gigantesca tarefa executada por Victor Lavalle, que subverte o conto e o racismo e a xenofobia de Lovecraft em uma obra estrondosa,  que inverta os polos da produção de horror para a perspectiva de Charles Thomas Tester.

Tester é um homem negro que sobrevive à uma Nova York violenta cuidando de seu pai doente, Otis, que sofre com uma dura vida de trabalhador da construção civil na Grande Maçã dos anos 1920.

Os métodos de Tommy Tester não são exatamente os mais retilíneos, mas os disponíveis para que negros e negras sobreviva sem a violenta e cruel desintegração de corpo e espírito que o capitalismo americano tinha como ferramenta para por o imenso contingente não branco em seu devido lugar.

Tommy foi contratado por uma mulher branca residente no Queens para obter um livro. Ma Att não é uma mulher qualquer, tampouco o livro, e a trajetória de Tommy até ela o leva também até Robert Suydam, um homem rico branco que está tendo sua sanidade contestada pela família na justiça de Nova York. 

Suydam contrata Tommy para que ele toque sue violão em uma festa na sua casa. Tommy aceita e ao dialogar com o milionário recebe o tratamento vip da polícia de Nova york aos pretos, sendo abordado pelo Detetive Malone e por Howard, detetive particular contratado pela família de Suydam para provar sua insanidade.

A relação entre Tommy e Suydam é o primeiro ponto da obra que nos chama a atenção, com o segundo vendo no jovem negro um serviçal e o multitarefas do Harlem entendendo nele um cliente útil, e depois uma ferramenta.

Malone e Howard são duas faces dos exércitos de opressão contra os negros, um omisos e covarde e o outro expansivo e violento. 

Otis não é apenas um bom pai, mas um pai que tenta tirar Tommy de um caminho que ele considera perigoso, e compartilhar com o filho o amor pela música e a sabedoria de quem precisa dela e de sua navalha para sobreviver em um mundo hostil. Não à toa ensina para o filho o caminho pelo qual ele, pela música, se tornará Black Tom.

Lavalle escreve uma obra fundamental para qualquer leitor de Horror, e faz valer cada capítulo e cada linha, dividindo seu livro entre a visão de Black Tom e a de Malone, subvertendo Lovecraft e abrindo uma estrada nova de sentimentos e visões do horror que não aceita mais o racismo e xenofobia como ferramentas.

Tal como em “Território Lovecraft” de Matt Ruff, Lavalle cria em seu “A balada do Black Tom” uma ressignificação da resistência preta contra a supremacia branca, só que desta vez, pela perspectiva de um homem preto.

Ressignificando Lovecraft, Lavalle ressignifica o Horror, inclusive como ferramenta de resistência e ofensiva da perspectiva preta sobre o mundo do medo.

 

Lavalle ganhou diversos prêmios e tem sua obra disponível pela editora Morro Branco

Horresenha – Kindred: Laços de Sangue – Octavia Butler (1979)

 

Kindred é uma obra prima da ficção fantástica e o é inclusive por não se encaixar em nenhum nicho específico das muitas formas de ficção e entre os gêneros e subgêneros da literatura contemporânea.

 

Octavia Butler é chamada de “A grande dama da ficção científica” na capa da edição de 2019 da editora Morro Branco, mas isso é reduzir o papel da autora, pelo menos no que se refere a “Kindred: laços de sangue”.

 

Nesta obra, a estrutura ficcional reverbera e ultrapassa os limites do horror, da ficção histórica, da fantasia, da sátira política, da crítica histórica ficcional e nos entrega um petardo que une o melhor de cada gênero e sub gẽnero.

 

Além disso, “Kindred” é um gigantesco drama passado em um período histórico que só uma perspectiva afro-americana poderia desenhar com acurácia.

 

Ao desenhar a história de Dana, uma mulher negra casada com um homem branco chamado Kevin, que por motivos desconhecidos é arrastada para 1815 e conhece um menino ruivo chamado Rufus, filho de um fazendeiro e senhor de escravizados de Maryland (EUA) e apaixonado por uma menina escravizada chamada Alice.

 

Alice e Rufus são ancestrais de Dana e é a partir das ameaças à vida de Rufus que ela é arrastada a 1815 e vive os horrores que uma pessoa escravizada pode sofrer naquele período histórico.

 

Esse resumo poderia ser o mais simples meio de entender a trama complexa de “Kindred”, mas mal arranha a superfície, porque o livro já inicia pelo final, pela forma como Dana é encontrada quando retorna da viagem final ao passado, e depois do prólogo não demoramos a termos contato com o fenômeno que atine Dana e Kevin como uma bomba.

 

Butler não quer apenas perpassar pelo fenômeno excêntrico ou tratar de ancestralidade, mesmo as mais tóxicas, ou nos dar um apanhado geral dos ferimentos que sofreram e das ferramentas e artimanhas que escravizados tinham à sua disposição para sobreviver ao inferno e uma existência sob tutela violenta de um sistema feito para moer carne negra. Ela faz tudo isso ao mesmo tempo.

 

A obra também nos permite a sensação brutal do choque de perspectivas contemporâneas como às daquele período histórico que nem obras audiovisuais extremamente explícitas conseguem fazer. 

 

Porque até dilemas falsos jogados irresponsavelmente nas discussẽos como as motivaçẽos pelas quais escravizados resistiram ou não, se eram ou não violentos, se entregavam-se ou não a desejos dos senhores ou enfrentavam-nos são postos na nossa frente sob uma perspectiva de quem tem algo a perder em cada escolha e nenhuma perda é pequena.

 

Até o destino de Dana sabemos logo de início e o sabemos com uma brutalidade ímpar, um corte seco, um cartão de visita sem anestesia do que vem pela frente. 

 

Dana é nosso guia, tal qual Virgílio o foi para Dante, e nos entrega o caminho por entre os milhares de círculos do inferno da américa supremacista branca.

 

Para quem pesquisa ou assiste a cinematografia e demais projetos audiovisuais que priorizam uma perspectiva afro americana, como a filmografia de Jordan Peele ou o novo cinema fantástico negro (séries como “Them” ou filmes como “Corra!”, “Nós”, “Antebellum” ou “A Lenda de Candyman”), é fácil perceber onde mora o germe literário desta nova guinada criativa para arte e entretenimento norte americano contemporâneo. 

 

“Kindred” traz consigo o que “Corra!’ fez no cinema e talvez reconheçamos em Dana a ancestral de Chris, talvez descendente de Ben de “A noite dos mortos-vivos”, e nas duas tramas mais do que pontos similares. 

 

“Kindred” é o melhor cartão de visitas para a obra da gigantesca Octavia Butler possível, é uma obra que sai do gênero de ficção científica para se tornar-se um universo em si. 

 

Butler é também autora das aclamadas séries “O Padronista” e “Xenogênesis”, que nos levam a uma perspectiva afro-americana da ficção científica e produtora de um impacto fundamental na produção ficcional contemporânea. Sua obra está  disponível publicada pela editora Morro Branco e podem ser adquirida aqui.

Creeptica – Livro de sangue (2009)

Livro de Sangue - ( Book of Blood ) Clive Barker | Amazon.com.br

 

Clive Barker é um dos mais influentes escritores de horror do fim do século XX até hoje. Com um perfil mais acintoso do que seus predecessores como o mestre Stephen King e Peter Straub, Barker tem uma brutalidade na escrit,a uam sanguinolência e um uso explícito do erotismo que são mais que uma marca registrada, são uma explosão de inovação que o colocma na primeira prateleira da literatura de Horror.

Suas aventuras literárias conceberam petardos literários como “Hellraiser – Renascido do inferno” (“The Hellbound heart” no original, publicaod em 1986 e a base do filme de 1987 digrigido pelo escritor), “Candyman” ( originalmente “The Forbidden”, conto publicado no livro “Livro de sangue volume 5” de 1985 e cuja adaptação cinematográfica de 1992 foi dirigida pro Bernard Rose e produida por Barker), “Evangelhos de sangue”(2015) e a série “Livros de sangue”, cujas histórias desenham o universo de Barker e que tem duas adaptaçẽos cinematográficas, a de 2009, que adapta uma das histórias do primeiro livro de 1984-1985, e a de 2020, que usa os livros mais como inspiração.

Em “Livro de sangue” temos a adaptação do primeiro conto do livro de 1984, em que a parapsicólogoa Dra. Mary Florescu (Sophie Ward) investiga uma casa que tem um longo histórico de fenômenos paranormais violentos e entende que ali conseguirá documentar os fenômenos e confirmar suas teorias a respeito da existência de um universo oculto, onde espíritos vagueiam e permanecem em um tipo de “vida” não material.

À pesquisadora se juntam  seu assistente Reg Fuller (Paul Blair), responsável pela cobertura tecnológica e de recursos de som e vídeo, ou seja, o cara que documenta as atividades, e Simon McNeal (Jonas Armstrong), um aluno que faz um perfil misterioso e charmoso e se coloca como médium capaz de despertar os fenômenos da cas,a de contatar os espíritos e para a Doutora a chava pra desvendar os mistérios que ela busca revelar.

O filme começa  com um jovem usando um moletom com capuz comendo algo em uma lanchonete, pinga sangue em sua comida, de longe ele é observado por Wyburd (Clive Russel) que já deixa claro em seu telefonema a outra pessoa, que está caçando o jovem. Depois descobrimos que o jovem é Simon, aluno da professora Florescu e que ele é um “Livro de Sangue”, cuja pele Wyburd irá retirar para entregar ao colecionador que encomendou o serviço.

Wyburd, no entanto, também é curioso e pede que Simon conte sua história. E sua história começa com um pé na porta quando sua primeira sequência é a de uma jovem recebendo ataques sobrenaturais com uma dose bastate gráfica de violência, embora com menos sangue do que é normal na cinematografia mais recente, e que finalzia cum omc lose na face desfigurada da jovem e bombeiros lendo a frase escrita com sangue na porta do armário: “Não zombe de nós!”.

A seguência já tem a sala de aula com a professora doutora seguindo seu curso, diálogos com Reg e a chegada de Simon em cena prevendo que a professora sofreria um acidente, que de fato ocorreu. Depois a chegada na casa, fenômenos e ataques sobre Simn, sustos com Reg ouvindo vozes e vendo vultos e um clima de tensã leve, com alguns jump scares, a perspectiva dos pesquisadores sobre problms tecnológicos quando ocorrem os fenômenos e uma relação cada vez mais próxima entre a pesquisadora e o médium.

O filme é uma pequena jóia do horror, porque eqilibra muito bem a violência gráfica de Barker com bom uso de feitos gráficos, da produçao de clima de horror, com a visibilidade de fantasmas, exibindo uma excelente inclusão ao universo mais amplo do escritor, que não se restringe a Hellraiser e Candyman.

Só a forma de mostrar o horror sme ir rápido demais ou apelar pra jumpscares a todo momento já é um bom sinal pra que essa obra, que envelheceu bem, seja uma boa aquisição pra uma cinematografia de horror que necessita sempre se lembrar que nem sempre os grandes blockbusters do gênero são onde estão o que há de melhor em matéria de qualidade.

“Lvro de sangue” é o que “Invocação do mal” sonha em ser, porque é um horror sobrenatural que abre uma porta para um universo rico sem ficar criando choronas e homens tortos forçados pra caber num universo compartilhado.

O filme está disponível na Prime Vídeo

A história do horror pode nos fazer entender que Cthulhu mora nos detalhes.

 

Lendo a escrita do horror do XIX até agora, percebemos o quanto as mudanças de tipo de escrita acompanharam as muitas novas faces que o Horror ganhava quando o avanço das mudanças sociais se acelerava.

Quando lemos “O Vampiro” de Polidori ou “Carmilla, a vampira de Karnstein” de Sheridan Le Fanu e comparamos com livros feitos no mesmo período, como “Frankenstein ou o Prometeu moderno” de Mary Shelley ou alguma das produçẽos de Poe, como “A máscara da morte vermelha” ou “O Corvo”, já encontramos variaçẽos de estilo e qualidade de escrita que dividem Polidori e Le Fanu de um lado e Shelley e Poe de outro. 

 

Se avançarmos na leitura para “Drácula” de Bram Stoker ou as obras do século XX como “Nas montanhas da Loucura” de Lovecraft, já podemos enxergar o uso das experiências de escrita anterior para produzir um texto mais robusto, mitologias ganhando formas mais nítidas e o próprio estilo compondo uma forma de arte e de produção cultural de maior qualidade técnica em geral.

 

É ao mesmo tempo impossível não enxergar no Conde Drácula elementos de Carmilla ou  de Lord Ruthven, da mesma forma os livros onde esses personagens assombram o leitor compartilham entre si de elementos de formação do mito do vampiro, ao mesmo tempo que “Drácula” avança na consolidação de elementos e exclusão de outros que compõem “Carmilla” ou “O Vampiro” e faz de sua história a forma basilar do horror vampiresco moderno e contemporâneo. 

 

Da mesma forma os horrores de Poe e as reflexões de Shelley fazem-se presentes na obra de Lovecraft e perambulam na grandiloquência do Horror cósmico lovecraftiano, mas o racista de Providence é tecnicamente mais elaborado e possui um talento nato em ampliar o escopo que nasce das letras da jovem feminista e do bardo de Baltimore.

 

Esse enorme preâmbulo ou nariz de cera é para discorrer sobre as mudanças na prosa de Horror anglo-saxã no século XX onde todos os elementos do XIX sofreram profundas mudanças de estilo e de composição de mitologia, mesmo sendo mantidos como um esqueleto canônico.

Quando a gente lê Shirley Jackson, reconhece ali um tributo à Shelley, MR James ou Henry James em vários momentos, mas se vê diante de uma nova montanha de estilo e técnica que se põe a parir muito mais do que ratos. 

 

Da ambiguidade que expõe os horrores concretos e metafísicos à dúvida sobre a existência ou não de fantasmas ao lado da desconfiança de que toda loucura é filha dileta da misoginia, a leitura de Jackson remete às reflexões de Shelley sobre a natureza do que é humano e como os monstros talvez não sejam os deformados, mas os jovens doutores megalomaníacos ou a sociedade tradicional.

 

Por vezes somos surpreendido pela ausência da grandiloquência do século XIX e até de Lovecraft quando lemos sue amigo Robert Bloch deslocar o horror para um motel de beira de estrada no Oregon e tirando das mãos dos lobisomens e monstros cósmicos o que nos apavora.

 

O protótipo de incel que é o Norman Bates criado por Bloch nos apavora exatamente porque ele pode estar ali do lado da nossa porta, no balcão da farmácia ou da padaria. A secura com que Bloch escreve esse horror anti metafísico é quase  auto explicativa como antípoda do Horror Cósmico lovecraftiano, faz aqueles monstros de outras dimensões parecerem nada diante do medo desconhecido que amiúde se faz presente nas nossas vidas e sequer sabemos.

 

Quando Jack Finney escreve seu “Invasores de Corpos”, vemos ali as digitais de Lovecraft ao mesmo tempo em que nos chocamos com a variação do romance epistolar de Stocker ao lermos um romance de Horror em primeira pessoa, dito com a secura de uma prosa californiana, quase como ditada por um cowboy de western italiano, empoeirado e seco. 

 

As vagens apavorantes, a duplicação para a sobrevivência, a cópia do outro ganharam filmes mais assustadores que o livro, mas tá ali naquela prosa seca, machista e com mais tabaco filme do Jim Jarmusch uma porrada que concretiza e vulgariza, não exatamente no mal sentido, o horror cósmico lovecraftiano.

É tão banal o mal dos invasores de corpos que faz até sentido ignorarmos essa qualificação, dado que eles só querem sobreviver. Mesmo o louvor de Finney à irredutibilidade da raça humana diante da invasão, algo que provavelmente motivou a Don Siegel dirigir a primeira adaptação, passa batido diante do quanto é banal toda a luta e a resistência humana diante do fato de que os humanos não venceram exatamente, deixaram de perder.

 

O que nos leva às transformações que desaguam na obra de Stephen King, que consegue reunir estes elementos listados em uma das mais prolíficas obras de horror de todos os tempos e recentemente tem perambulando pela variedade de estilos que da trilogia de Bill Hodges à seu Revival praticamente homenageiam toda a gama de livros pulp até a obra de Mary Shelley.

 

Hodges e sua sócia Holly Gibney  são personagens que nos entregam as pontes entre Shelley, Lovecraft, Bloch e Stoker, da mesma forma que o reverendo Jakobs mistura Van Helsing com o Doutor Frankenstein e vai pras montanhas da loucura desafiar a morte como um vampiro de almas.

 

Poderíamos aqui listar o quanto Stoker perambula nas obras mais antigas de King, como o universo que cerca Jesuralem Lot, ou o quanto o mestre do Maine presta tributo ao racista de Providence seja em tudo o que envolve sua Torre Negra ou até nas peripécias do Parcimonioso em IT, mas é singular que sua obra mais recente estes estilos todos recebem um tributo mais visível, e melhor escrito, que suas obras mais antigas.

 

Essas mudanças e novas contribuições se fizeram presentes na obra e na literatura de clive Barker e parecem ser parte de todas as novas obras da literatura anglo-saxã de horror contemporânea. 

 

Li ontem Jack Ketchum em um conto em que uma série de mal entendidos deságuam em um desastre, e tudo isso sendo escrito com uma doçura brutal em que o conjunto de desastres e solidẽos contemporâneos da vida urbana, nossa necessidade de amor que usa a internet como muletas, faz nascer o que é para mim um novo clássico. E lá está a história escrita de forma epistolar, mas como chat e e-mail.

 

A questão é que temos certos campos da análise de literatura e filmes que ignoram os processos de produção cultural relacionados a seu próprio tempo, às variações de estilo em relação às próprias mudanças sociais que refletem-se na forma de escrita.

 

Há saudosismos e leituras tortas como se Le Fanu e Stoker fossem superiores a Polidori,que escreveu seu Lord Ruthven cinquenta anos  antes de seus colegas, pelo simples fato de terem mais talento. 

 

Outras tratam uma ruptura de perspectiva de classe e sua invasão naturalista  ao mundo do Horror, onde Bloch, Jackson e King banham-se, precedendo Ketchum e Barker e fazendo-os possíveis, como elemento de produção de menor qualidade técnica, quando é o contrário, a absurda abordagem do fantástico pelo viés naturalista amplia a qualidade e o tributo aos mestres anteriores e traz pro chão do medo o que o Horror Cósmico, os vampiros e o Prometeu moderno tiravam do cotidiano do trabalhador.

 

Entendendo estilo e literatura a partir de sua história podemos fazer justiça ao Horror anglo-saxão e sua forma peculiar de fazer-se canônico enquanto a tudo muda, pelo menos sob o ponto de vista da perspectiva.

 

Creeptica – Cronos, de Guillermo Del Toro (1993)

Cronos, o filme que mostrou ao mundo a arte de Del Toro | Nerdssauros

A primeira informação que qualquer um que esbarre em “Cronos” precisa saber antes mesmo de ver é que se trata de uma obra-prima. 

 

Sim, Guillermo Del Toro inicia sua carreira cinematográfica metendo o pé na porta, introduzindo em inovações em um cinema de horror que por sua característica extremamente canônica por vezes tende a desprezar a originalidade.

 

Se o cineasta mexicano demorou a conseguir que Hollywood fosse com ele menos do que uma camisa de força, não é o que se vê em seu primeiro longa, que só encontra qualidade similar em “A Espinha do diabo”(2001) e um pouco inferior em “O Labirinto do fauno”(2006). 

 

Como filme, roteiro, direção e originalidade “Cronos” é um filme que só é superado na filmografia de Del Toro pela outra obra prima “A forma na água” (que ainda traz consigo brilhantes homenagens ao cinema como um todo e às artes plásticas, com uma cenografia e direção de arte que remete imediatamente às obras do artista plástico Edward Hopper).

 

Del Toro apresenta em “Cronos” a história de Jesus Gris (Federico Lupi), um antiquário apaixonado pela neta e que recebe em sua loja uma obra rara, que contém em sue interior um artefato desenvolvido em 1536 por um alquimista e que concede vida eterna a quem o detém.  

 

Gris percebe que saem de uma estatueta um tipo de besouro ou barata que acende sua curiosidade. Mexendo mexer nela, encontra um tipo de objeto que parece um besouro e nele fere o dedo. Depois desse evento ele começa a perceber que aparentemente está rejuvenescendo e segue utilizando de formas cada vez mais invasivas o objeto. Nesse meio tempo, um homem rico e enfermo chamado De la Guardia (Claudio Brook) procura de forma ensandecida ter a posse da estatueta, e com ela do objeto, para curar a sua vida e para isso usa seu sobrinho Angel (Ron Perlman) para procurá-la e utilizar os meios, legais e ilegais, disponíveis para obtê-la.

 

No decorrer do filme entramos em contato com inovaçẽos no cânone do horror, no debate sobre a imortalidade, seus preços e com abordagens novas a respeito dos cânones do Horror e de arquétipos fundacionais do próprio gênero. 

 

A construção cênica, as atuações, o roteiro, tudo aponta para um cineasta, produtor e roteirista extremamente preocupado,desde o primeiro filme, com novos aspectos do gênero pelo qual é apaixonado no âmbito dos detalhes. Del Toro inaugura uma perspectiva que escoa para novas formas de Horror também criadas por ele e Chuck Hogan em “The Strain” (2014).

A inquietude de Del Toro faz de “Cronos” um filme obrigatório e um clássico do cinema.

“Cronos” está disponível no Prime Video.

 

Creeptica – Ao 3º dia

O Horror argentino é um seguidor honrado da qualidade geral do cinema dos hermanos. 

 

Com obras que transitam coerentemente entre a política e a produção fílmica de horror e que traduzem perfeitamente os medos sociais da sociedade argentina, a cinematografia de horror dos vizinhos tem uma vasta lista de filmes que equilibram qualidade cinematográfica,a roteiros de fôlego, uso consciente dos recursos disponíveis e extremamente habilidade na direção.

 

Podemos citar os recentes “História do oculto” (2020) ou os mais antigos “Aparecidos” (direção de um espanhol, mas locação, atores e roteiro argentinos, de 2007) ou “Aterrorizados” e “Os Esquecidos” (2017) para indicar uma tradição de excelência cinematográfica do horror argentino e seu trânsito pelos subgêneros do Horror.

 

Especialmente em um momento onde o streaming alimenta os fãs do gênero com uma profusão de obras de nacionalidades diversas, é extremamente interessante um mergulho em mais uma grande representação do cinema argentino a partir do Horror. 

 

Nesse processo, selecionar um filme entre “A ira de Deus” (2022), “O fio invisível” (2021) na Netflix e “Ao 3º dia” na HBO Max foi um trabalho um pouco tenso de escolha, porque os três apresentavam sinopses e trailers que não entregavam o jogo do filme, indicavam uma qualidade interessante, mas sem uma resenha confiável em português que apresentasse mais a ponto de influenciar a escolha final.

 

Ao fim e ao cabo escolhi a apresentação de “ao 3º dia” e a surpresa inicial pelo bom uso de cenário, elenco e cenografia se transformou em um júbilo pela perspectiva de um filmaço que honra as referências, usa maravilhosamente os elementos cênicos e nos traz uma belíssima homenagem aos filmes da Hammer, a Stephen King e ao cinema de horror em si.

 

Cecília e seu filho saem em viagem pela noite e durante o trajeto se envolvem em um acidente. Ao acordar, Cecília se vê sem seu filho, descobre-se em uma casa abandonada e descobre que estava desacordada por três dias. Daí em diante Cecília e seu médico se envolvem em uma trama que inclui um marido violento, suspeitas da desmemoriada ser o alvo principal de investigações de assassinato e um périplo em busca do filho perdido que incluem perigosas sessões de hipnoterapia e a perseguição da polícia argentina, excelentemente representada por Ventura, um detetive experiente com faro de perdigueiro e que desde sempre desconfia de que há algo de podre no reino da Dinamarca.

 

O diretor Daniel De La Vega nos entrega em “Ao 3º dia” uma excelente condução fílmica, um clima sombrio sem exageros, a presença de personagens marcantes como o fanático religioso que persegue Cecília e foi interrompido em uma missão esquisitíssima a mando da igreja e uma trama que cresce demais no terço final, com uma homenagem bacanérrima aos filmes de horror da Hammer, Universal e ao cinema e literatura de horror como um todo.

 

Cinema de primeira qualidade, “Ao 3º dia” está disponível na HBO Max.

Horresenha: Mr. Mercedes – Stephen King.

Quando você abre “Mr. Mercedes” de Stephen King, o que você espera é mais uma obra onde o horror desfila com requintes de crueldade, muito sobrenatural e a habilidade do mestre em costurar uma trama ágil, personagens cativantes e um final capaz de arrebatar o leitor com sua junção de redenção e medo. 

Bem, “Mr. Mercedes” entrega quase tudo isso, porque a única coisa sobrenatural é ver a capacidade de King de ir além do Maine, de superar os problemas das primeiras obras e seus finais por vezes anti climáticos e crescer como autor nos fornecendo uma obra marcante, personagens maravilhosos e que geraram não apenas mais dois livros da trilogia do meio oeste estadunidense, como nos entregaram Bill Hodges, Holly Gibney e Jerome para nos guiar pelo Horror em outros contos e livros, inclusive o sensacional “Outsider” e o conto “Com sangue”, contido no livro de mesmo nome.

O livro começa com trabalhadores se organizando em fila para uma feira de empregos no centro de convenções de uma cidade do Meio oeste americano. King nos apresenta logo de cara Augie Odenkirk, Janice e Patti, o bebê de Janice, que estão na fila para tentar um emprego e uma nova vida. Logo os adultos começam uma relação de simpatia que leva Augie até a sonhar com um café com Janice,mesmo dizendo a si mesmo que não seria um encontro. 

 

Enquanto estamos enredados com personagens que rapidamente nos cativam, seja pela gentileza de Augie, seja pela situação de Janice como mãe solteira, King exercita uma de suas maiores qualidades: a capacidade de nos tirar do encanto com personagens construídos por ele através da tragédia.

Sim, o livro começa apresentando personagens que morrem ao serem atropelados por uma Mercedes em alta velocidade, guiada por um assassino frio, louco e cruel chamado Brady Hartsfield. 

Deste ponto em diante, somos apresentados ao Detetive Bill Hodges, que se aposenta da força policial, seu parceiro Pete Huntley, que se tornaria parceiro de  Isabelle Jaynes depois da aposentadoria de Hodges, a Jerome Robinson, amigo e ajudante faz-tudo de Hodges, e o trio da Discount electronic: Freddi Linklater, Anthony Frobisher e o assassino Brady Hartsfield.

Hodges e Hartsfield transitam em torno desses personagens até a vida e a relação de gato e rato entre o detetive e o assassino, se encontrarem com Janelle Patterson, irmã da dona do mercedes roubado  e usado como arma, Olívia Trelawney, e por fim Holly Gibney, a prima  de Janelle que sofre com uma série de distúrbios psiquiátricos produzidos por uma criação cheia de abusos por sua mãe.

King descreve a caçada ao assassino com extrema habilidade, cria personagens fundamentais pro cânone do horror e das histórias de mistério. E nos lega um vilão de primeira linha, histórico, caótico e marcante.

Em “Mr. Mercedes” não apenas  seguimos Hodges com olhar fixo e engajamento, mas torcemos para ele e seus “Watsons” em suas escolhas difíceis,muitas vezes ruins, sua sorte e seus medos.

Quando a Mercedes cinza se torna azul,  não temos uma redenção forçada como de algumas histórias antigas de King, mas o resultado é uma trama de fôlego, robusta, onde personagens pagam preços altíssimos pela conquista de um lugar de honra, visível ou não, na cidade que quase perde milhares de pessoas para a sanha homicida de um louco.

“Mr. Mercedes” foi adaptado para a TV e distribuído pela Starzplay, que também adaptou “Achados e perdidos” e “Último turno” , obras que fazem parte da trilogia Bill Hodges, mas mesmo quem assistiu a série vai perceber as diferenças se engajamento na trama do livro. 

Ler “Mr. Mercedes’ é obrigatório para quem é fã ou não de Stephen King, assim como assistir a série é uma experiência maravilhosa, livro e série trocam muito bem clima e informações que fazem desta obra um clássico.