Entre o otimismo da vontade e o pessimismo da razão

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O Governo Jair Bolsonaro expõe as tripas da direita e da elite em praça pública, mas também expõe o imobilismo e a incerteza de uma esquerda que ao mesmo tempo que se organiza no âmbito institucional se fragiliza no espaço público, na rua.

E isso ocorre porque esta mesma esquerda nos mais variados graus prefere se esconder em ambientes controlados do que arriscar a disputa pelas consciências na rua.

Esse fenômeno já ocorreu a partir de 2013, quando parte da esquerda, inclusive a dita esquerda radical (De PSOL a PCO), preferiu criminalizar arroubos de ação direta destrutiva a discutir e disputar essa galera que quebrava vidraça.

Se preferiu, do alto de uma razão irracional e negacionista dos movimentos históricos, por água no moinho da criminalização, de processos, despolitização e violência policial contra os mais radicais (Parte dos socialistas, anarquistas e autonomistas) apostando numa manutenção no poder por inércia de uma ex-querda cada vez mais social-democrata (pra ser gentil) que fazia acordos pornográficos com a extrema-direita entregando anéis e dedos achando que o lulismo sozinho sustentaria dinastias de democratas com pendores sociais no Planalto.

À criminalização pelos discurso se seguiu a criminalização pela justiça, pela polícia, especialmente depois da mal explicada morte do cinegrafista Santiago, com uma nova geração de esquerda vendo novas lideranças não alinhadas à esquerda partidária ser presa, processada, ver a vida ruir e seguir sendo transformada em pária por tentar mudar o mundo.

De Gilberto Maringoni (PSOL-SP) e parte das correntes do PSOL atacando autonomistas e anarquistas (FIP, etc) como “Vândalos protofascistas” até Tarso Genro e Agnello Queiroz (governadores do RS e DF, respectivamente, eleitos pelo PT) enviando suas polícias atrás de ativistas (entre eles ativistas do PSOL), a folha-corrida que mancha a trajetória das esquerdas, com as digitais no esvaziamento da rua pela esquerda com sua ocupação pela extrema-direita, é algo continuadamente omitido pelos mais simplórios e rasos emissores de “análise” sobre as conjunturas, e que hoje acham lindo eximir Dilma de culpa pelo seu ocaso.

Não à toa há um coro de animação histérica sobre revoltas mundo afora e que adora Cânticos dos cânticos da euforia alucinada que repete “Não passarão” para o fascismo, enquanto eles não só passam como dão ré. O problema é que esse coro não rima com o movimento.

O grau de organização e organicidade dos discursos de redes sociais é perto de zero, e mesmo com o crescimento de organização e organicidade de uma revolta palpável nos partidos de esquerda(difícil medir em organizações autonomistas e anarquistas, mas apostaria que também está alta a procura de organização), isso não tem se refletido numa mobilidade de ação que mantenha essa galera entusiasmada.

E parte do problema é que se vende sonho, não se vende o trabalho e a organização necessária para agir e transformar.

Não é um fato incomum para a esquerda o discurso que alimenta “primaveras” não ir além do conversê pra organizar essas primaveras.

Porque transformar exige tocar em vespeiros (homofobia, racismo, machismo estruturais, por exemplo), e ninguém quer tocar em vespeiro e arriscar perder voto, ou poucos topam o risco.

Mais seguro gravar com o Quebrando o Tabu.

As manifestações pela educação foram maiores do que as contra a Reforma da Previdência e pouco se tentou aprender com isso. Pior, pouco se tentou avançar no debate sobre educação em si, pouco fomos além do debate que discute o quanto a universidade precista ir mais pra rua e divulgar sua serventia.

A questão é que a educação atinge todos e especialmente atinge uma galera em formação que mesmo tendo sido pega pela perna pelo Novismo liberal, percebe que a vida não é filme, você não entendeu, e foi pra rua discutir e disputar a necessidade de universidades públicas, porque sentiu na pele e isso lhes deu experiência, experiência que é a base da formação de consciência.

Já a Previdência é um campo onde a disputa está com quem já está às vésperas de se aposentar ou é adulto e tem convicções menos flexíveis com relação a seu dia a dia e seu futuro, convicções que por vezes lhe são deletérias.

A aposentadoria é, pros mais jovens, uma utopia, um futuro, que hoje quase não mais existe.

E o bombardeio sobre o quanto a Deforma da Previdência era necessária, é algo que beira os vinte anos e buscando exatamente sua destruição. Qualquer opinião que revelasse ser uma manobra de opinião pública tinha oitocentas dizendo que a esquerda era negacionista.

Destruir o ensino público ninguém vai dizer às claras como disse que era preciso destruir a previdência. E mesmo assim não conseguiram passar a capitalização.

A questão é que o fôlego da resistência via educação parou, e por quê? Porque parte dos atores que estavam envolvidos na não construção concreta da resistência à Deforma da previdência percebeu que perderia o controle da indignação se continuasse a apoiar os movimentos contra o desmonte da educação, pior, ainda comemora como vitória a manobra do Desgovenro Bolsonaro de, a dois meses do fim do prazo para sua utilização sem que isso impactasse no exercício de 2020, liberar recursos cortados em março.

Mas parou o fôlego? Não exatamente, apenas se reduziu e agora precisa de mais esforço para reavivar a chama, especialmente quando é visível que o neoliberalismo está nas cordas por conta dos movimentos de resistência no Equador e Chile.

Mas como lidar com isso se a esquerda via de regra prefere agir como coro de contente em rede social do que segurar o rojão de organizar, filiar, agir para concretizar seu aumento nos espaços possíveis.

Há interessantes campanhas de filiação, ao PSOL por exemplo, mas isso basta?

Não, porque é preciso existir ações públicas cotidianas que façam as pessoas se sentirem úteis, é preciso também curso de formação abertos e didáticos, com o cuidado de jamais se tornarem cursos de doutrinação (não dá pra confundir formação com proselitismo de dogma), e são muito precisos meios de ação de convencimento para além de divulgação de atos e ações.

Isso tudo é uma ideia de construção de organização partidária, há outros caminhos possíveis, e é didático pra evitar que militância se confunda com a enojante mistura de culto à personalidade com discurso esfuziante de uma alegria militante que nada faz além de divulgar um “Não passarão!” sem práxis que impeça o fascismo de passar.

Porque é disso que faz parte da militância, que confunde a necessária ação contra o desânimo, focada na nossa memória e nos nossos fetos, com uma falsa felicidade estagnada que não constrói porra nenhuma e ainda fica saudosa de péssimas experiências porque hoje estamos literalmente fudidos na mão de um presidente com banca de miliciano.

Não, amigos, não estamos vencendo. Estamos perdendo de um time ruim por 7×1, o gol que fizemos foi de honra e o fato de outros times estarem virando o jogo, ou perto de iniciarem a virada, não faz da esquerda do Brasil mais do que observadora enquanto a extrema-direita vem de novo ameaçar nosso gol.

A mobilização do Chile está vencendo a extrema-direita, mas é lá, não é aqui e não estamos fazendo muito para trazer aquela indignação pra cá, além de comemorar e chorar vendo a foto dos outros, enquanto mugimos “saudades do meu ex” e achamos Maia democrata.

Com o Desgovenro Bolsonaro em derretimento acelerado e sendo questionado por elite e direita, sentamos em cima do gol de honra marcado em março com nossas mobilizações pela educação e achamos que tá bom porque dá pra esperar de um a três anos (dá?) pra demover Bolsonaro de sua cadeira que mancha de óleo nosso litoral e a vida de pescadores e povos originários, amplia o número de feminicídios e crimes de ódio, queima a Amazônia e avança sobre terras indígenas.

Não adianta pedir a queda de Salles e Weintraub se o chefe deles poderá nomear outros dois canalhas.

Não adianta ter medo de Mourão ignorando que a bola da queda de Jair tá quicando na nossa frente e a gente tá deixando Maia e Toffoli o manterem no poder enquanto as digitais do assassinato de Marielle, rachadinhas e aparelhamento criminoso do poder avançam sem suar.

O otimismo da vontade do nosso discurso é delusional e tenta calar o pessimismo da razão que explicita nossa imobilidade.

Sim, a imprensa liberal erra ao dizer que a esquerda está parada na institucionalidade, porque nessa ela não está, mas acerta, sem mirar lá, pra dizer que ela tá omissa na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapé,

Com exceção dos indígenas, povos originários, Sem teto e Sem terra, o restante da esquerda tá olhando pra ontem, e em vez de ser pra revolução Russa tá olhando pros governo Lula como se fossem o Reino Encantado de Aruanda.

A gente precisa do pessimismo da razão, porque estamos perdendo e o fato do time de lá ser ruim e o juiz ter cansado de roubar não transforma o resultado uma vitória.

Mas também precisamos de um otimismo da vontade real, que faça com que, mesmo com todas as tretas, a gente levante no dia seguinte e faça acontecer as organizações, os atos, as produções de conhecimento e programa, as ações necessárias.

O otimismo da vontade não é um alento pro pessimismo da razão, mas o combustível pra, de forma realista, transformar a realidade que faz a razão ver tanto pessimismo.

É fundamental sairmos do transe que sonha com a volta de Lula como nosso Dom Sebastião de Garanhuns e pormos em prática movimentos de organização e organicidade que permitam que a conjuntura mude e que ele possa ser o Dom Sebastião de Garanhuns pra quem precisa de um homem pra chamar de seu.

Temos que pôr em prática movimentos que permitam que saibamos quem mandou matar Marielle e porque Jair, Flávio e Queiroz estão desde sempre produzindo canalhice e fake news sobre ela.

Pra sairmos do transe é preciso construir meios de irmos pra rua, é preciso fazer banquinha com material, discutir no cotidiano, filiar gente, chamar passeata, cobrar as lideranças porque não estamos agora gritando “Fora Bolsonaro!” e estamos tentando derrubar ministro.

Há um latifúndio para nosso otimismo da vontade ocupar e há uma conjuntura violenta que o pessimismo da razão precisa ver.

E pra vencermos é fundamental agirmos com o primeiro, enxergando com o segundo.

O mito da pureza ideológica

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Ideologia é coisa séria.

Há quem pereça pelo mundo defendendo de forma tola que ideologia é aquilo contra o qual quem é consciente se rebela. Ou seja, o que o discurso diz é que ele, enquanto discurso, não é ideológico, apenas o outro o é.

Há quem dispute a ideologia que percebe melhor o real e dele dispõe para transformar ou conservar.

Há quem debata a ideologia como algo universal, que há em tudo e em todos.

Há quem defina ideologia como um falseamento da realidade que se faz presente na construção da hegemonia cultural de uma classe sobre outra a partir da naturalização de valores de uma classe opressora como se fossem universais ao todo. Essa é a definição marxista.

Eu particularmente entendo a ideologia como um apanhado de percepções do real e que pertence ao debate que ocorre na construção da consciência de classe.

Ideologia é uma forma de perceber o mundo.

Se buscarmos no Google a definição de ideologia é:

ideologia
substantivo feminino
1.
fil ciência proposta pelo filósofo francês Destutt de Tracy 1754-1836, que atribui a origem das ideias humanas às percepções sensoriais do mundo externo.
2.
p.ext. fil no marxismo, totalidade das formas de consciência social, o que abrange o sistema de ideias que legitima o poder econômico da classe dominante (ideologia burguesa) e o que expressa os interesses revolucionários da classe dominada (ideologia proletária ou socialista).
3.
p.ext. soc sistema de ideias sustentadas por um grupo social, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos.
“i. conservadora, cristã, nacionalista”
4.
p.ext. conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos.
“sua i. identifica-se com a dos republicanos”

Aqui de onde eu vejo a ideia da ideologia ser apenas um falseamento do real que serve à produção de hegemonia me parece ao mesmo tempo lógico e limitado.

Lógico porque sim, há esse elemento da produção de ideologia que serve a uma hegemonia de classe, e limitado porque no decorrer do tempo a percepção de Marx deu conta de apenas um aspecto do mundo cultural e das relações de força entre movimentos culturais relativos às classes.

Em resumo: Ideologias são produções de sentido sobre o real a partir de um viés político. Todas as classes o possuem e é isso que as dá em algum momento consciência de classe a partir da percepção ideológica, com matrizes diferenciadas, da realidade.

Todas as classes possuem suas ideologias e a relação entre elas produzem choques, entre eles os compreendidos por Marx como uma prática da ideologia em si, a partir da produção de uma dominação de percepções da cultura de cima pra baixo, no sentido da hegemonia cultural burguesa.

Só que Marx não enxergou o todo do movimento.

Dos Marxistas, foi Gramsci que talvez tenha inicialmente desenhado melhor  o restante do quadro.

Gramsci iniciou o entendimento que implicava perceber que há em todas as classes movimentos de percepção do real e de construção de sentido, inclusive político, para ele, e que inclusive a hegemonia cultural burguesa, ou de qualquer classe “superior”, era relida e reescrita através das apreensões populares, e que o processo de construção dessa percepção ideológica produzia circularidades de valores e ideias que inclusive influenciavam e transformavam a cultura das elites.

E essa percepção não é anti-marxista, pelo contrário, ela segue o desenvolvido por Marx e amplia o sentido do debate cultural por ele, dando outros sentidos por Gramsci, Bakhtin, Thompson,etc.

E por que recupero esse debate?

Porque há uma simplificação da percepção da ideologia por parte da militância que ignora o processo dela como parte do construto do real pela população e disputa uma percepção do real mais pura que a outra.

O cotidiano de lutas é menos entender ideologia como um fator de apreensão do real, com a busca de superação de suas opacidades e não de absorção de um falseamento da realidade, e mais uma tentativa de impor ao outro uma ideia do real que encaixe enquanto falseamento da consciência.

Inadvertidamente o cotidiano de embates ideológicos é briga de pombo sobre qual o grunhido que vence no processo de imposição de percepções. E isso é exatamente a definição de Marx para a ideologia.

O real em seu inteiro teor é imperceptível, percebemos individualmente frações dele no cotidiano, em conjunto temos fragmentos do real que compõem um mosaico verossímil do real, mas o conjunto da experiências individuais que se organizam em grupos sociais, partidos, coletivos ou classes, ainda é uma percepção compartilhada de um real opaco, deduzido, incapaz de ser apreendido.

A consciência de classe nasce quando esse conjunto de apreensões de um real opaco se organize em uníssono, estabelece pontes empáticas entre indivíduos que se percebem mais unidos em experiências e sentimentos do que afastados.

Essa compreensão não se dá num uníssono ideológico, pois cada fragmento do real é lido com configurações diferentes das ferramentas de leitura dele.

Essa compreensão, essa consciência, se dá numa polifonia ideológica, numa polifonia de percepções do cotidiano, de visões de ângulos diferentes de processos reais.

A convicção de uma percepção não estabelece tábula rasa de todas as demais.

E é por isso que a pureza ideológica é um mito.

A anarquia explica e discute um determinado aspecto da relação entre coletivos e indivíduos e o estado e a sociedade, o socialismo, o ecossocialismo, o comunismo, o liberalismo, o stalinismo e o  fascismo outros aspectos.

Inadvertidamente todas as formas de percepções do real compreendem e apreendem valores factíveis da opacidade do real, traduzem uma percepção válida da realidade enquanto elemento observável.

O caminho que seguimos e que optamos seguir para as transformações deste real é que nos diferem ideologicamente e politicamente.

Nosso problema com o fascismo não é que ele não enxerga o real, é que ele enxerga uma faceta do real que desejamos transformar e evitar que se produza enquanto cotidiano.

Idem com o Stalinismo.

A diferença da percepção anarquista da realidade e da ecossocialista é com relação à opção de participação no estado e em relação às organizações hierárquicas.

As leituras de cada grupamento não são um falseamento da realidade que algum tipo de treinamento pode suplantar ou “curar’.

A própria concepção de que há uma forma de enxergar o real que supera todas as outras é extremamente autoritária.

A ideia de que há um tipo de realidade que se acredita e que se busca construir ao contrário, permite um diálogo entre percepções que aprofunda a ideia da consciência de classe enquanto elemento de construção empática de caminhos comuns para a transformação do real.

Aliás, esse é um dos principais eixos que nos diferem dos fascistas: A nossa consciência de classe é empática, se busca unidade não de uma percepção do real, mas de reconhecimento entre nós de vidas, sentimentos e situações de vida em comum.

Nossa percepção inclui o outro, a deles exclui o outro.

É na alteridade que defendemos que está a unidade necessária para as transformações.

Ser anarquista, comunista, socialista ou ecossocialista nos diferencia em muita coisa,mas bem menos do que o conjunto de valores que defendemos e construímos como valores de percepção empática e de consciência do real enquanto uma unidade de percepções que incluem a alteridade.

Sem empatia somos nada, sem empatia o fascismo é tudo.

E por isso a ideia de uma ideologia pura, de uma percepção do real que a tudo explica e que a todos abrange e quem não a segue é tolo ou inimigo é, fatalmente, um combustível pra alimentar o caudal de ódio que o fascismo adora.

A própria ideia de que o pensar do outro é uma traição é o contrário da produção de consciência coletiva pela empatia.

Claro que há traições, que há opções pelo empoderamento de inimigos na luta pelo chão, mas esse processo mesquinho do cotidiano é apenas uma faceta do cotidiano de lutas e de valores que compartilhamos.

Anarquistas, liberais, comunistas, socialistas e ecossocialistas foram solidários entre si com a morte da Marielle e com o atentado a Lula, com todas as críticas que permanecemos tendo entre nós, e que não impede o processo empático de unidade na luta.

E é nesse compartilhamento de valores que precisamos fortalecer a apreensão do real e apercepção da distância entre opção ideológica para a luta política e sectarismo que infere que o diferente é cego ou tolo.